"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre

quinta-feira, 7 de maio de 2015

Cenário de guerra



Cenário de guerra

* Este conto participou do 12º Prêmio Paulo Setúbal 




   O juiz acabava de erguer o braço. Naquele momento, a arquibancada do Flamengo explodiu de alegria e festa pelo placar de 2x1 sobre o Fluminense. Miguel - um entre os milhares de torcedores rubro-negros ali presentes - também exultava de alegria pelo resultado do jogo.
   Depois de alguns minutos de muita festa, os torcedores de ambos os times começaram a se encaminhar para as saídas repletas de pessoas que deixavam o Maracanã. O forte odor da transpiração resultante daqueles noventa minutos de muita vibração de ambas as partes, tornava o ar abafadiço e nauseabundo.
   Miguel com muita dificuldade conseguiu aos poucos se desvencilhar da multidão e chegar finalmente ao carro. Porém, ao girar a chave na fechadura da porta, ouviu uma gritaria ensurdecedora que se dirigia em sua direção.
   Pôde perceber que se tratava de impropérios da torcida organizada do Fluminense contra a torcida do Flamengo. Naquele momento avistava uma multidão de torcedores com paus e pedras nas mãos se movendo na direção de alguns torcedores rubro-negros que estavam do outro lado. E o grande problema é que o mesmo se encontrava no meio do caminho das duas torcidas.
   Seu primeiro ímpeto foi entrar dentro do carro o mais rapidamente possível, porém antes que conseguisse abrir a porta, uma pedra - que naquele momento seria impossível dizer de qual lado viria - atingiu-lhe a cabeça, derrubando-o no chão.
   Atordoado pelo impacto, Miguel ainda teve bastante presença de espírito para rastejar para debaixo do veículo, enquanto podia ouvir a torcida do Fluminense passar dando chutes e socos na lataria do seu carro, quebrando também todos os vidros.
   Alguns mais afoitos pareciam querer virar o veículo, porém uma saraivada de objetos - entre pedras, paus e garrafas - numa resposta de alguns torcedores do Flamengo, os desviou de tal intento, já que os mesmos se ocupavam em se proteger de alguma forma.
   Debaixo do carro, Miguel via passar aquela nuvem de gente, que mais se assemelhava a algum estouro de boiada, dando graças a Deus de não o terem percebido escondido ali.
   O torcedor se encontrava aturdido; o suor escorria-lhe, por assim dizer, por todo o corpo; ao passar a mão pela fronte, percebeu que a mesma sangrava.
   Esgueirando a cabeça, pôde avistar que a multidão se digladiava a algumas dezenas de metros dali; sirenes de polícia podiam ser ouvidas ao longe, e aproveitando-se disso, resolveu sair ali debaixo e procurar ajuda.
   Ao se levantar, parou e ficou a contemplar o carro quase todo destruído. Com os olhos marejados de lágrimas, teve vontade de chorar o prejuízo, porém mais gritos de fúria o trouxeram a realidade e pôde avistar vários torcedores do Fluminense que vinham em sua direção.
   Naquele momento, o bom senso e o instinto de sobrevivência o fizeram pensar que sua integridade física era mais importante que bens materiais. Pôs-se a correr desabridamente sem saber para onde, quando avistou várias viaturas de polícia.
 As viaturas pararam repentinamente e vários policiais armados com porretes desceram dos carros e começaram a perseguir os vândalos.
   Um dos policiais parou Miguel e perguntou se o mesmo estava bem; o mesmo balbuciou rapidamente o que acontecera com ele; em seguida foi encaminhado para uma ambulância que chegara ali quase que no mesmo instante da polícia.
   Ao longe, a polícia perseguia torcedores que haviam transformado o estacionamento do Maracanã num verdadeiro cenário de guerra; podia se ver um torcedor do Fluminense levar uma bordoada nas pernas e cair ao chão, para ser imobilizado por um policial logo em seguida; um outro vestido com a camisa do Flamengo arremessava uma pedra em direção aos policiais que se protegeram com seus escudos, em resposta os mesmos arremessaram uma bomba de gás lacrimogêneo que fez com que o mesmo tampasse com a camisa o rosto sufocado, para cair logo em seguida no chão, estonteado.
   Depois de ser atendido, Miguel agradeceu os préstimos de que havia sido objeto e caminhou em direção ao carro. O crepúsculo anunciava o início da noite na cidade do Rio de Janeiro.
   Seu semblante denotava um misto de amargura e tristeza, se lembrava culposamente do fato de não ter renovado o seguro do carro. Tirou o celular do bolso e fez uma ligação para que a esposa o viesse buscar ali.
   Indagava de si mesmo como alguns torcedores podiam transformar a alegria do futebol num espetáculo de violência e vandalismo. Naquele momento, as lembranças dos xingamentos, das agressões sofridas e da destruição do carro, serviam para fazê-lo reflexionar de como era possível que em pleno século 21 - era da tecnologia - ainda houvesse aquele tipo de barbárie, que parecia remetê-lo aos idos de séculos já findos.
   Aonde estaria o respeito que um homem deve consagrar ao outro; o direito à liberdade de optar por este ou aquele time de futebol?
   Todas estas indagações fervilhavam em sua mente, onde o mesmo procurava equacionar uma solução para aquele problema que afligia não só a ele, mas também todos os torcedores que queriam ir aos estádios apenas torcer pelos seus times.
   No horizonte, raios de sol fugidios douravam as nuvens encantando os olhos de quantos se dispusessem a apreciar aquele espetáculo da natureza. Enquanto esperava a esposa chegar, Miguel agradecia em seu íntimo o fato de ter tido apenas escoriações leves e ter saído ileso de toda aquela selvageria.
   Daquele dia em diante, repensaria muito antes de sair para um estádio novamente e que por causa da falta de respeito e barbárie de poucos, muitos estavam condenados a ter que torcer pelos seus times de dentro de suas casas.


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