"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre

quinta-feira, 27 de novembro de 2014

TOC



TOC

* Este conto participou do 10º Concurso de Contos e Crônicas Unicult


    O relógio da parede assinalava vinte e uma horas. Podia-se ouvir no ambiente suave música clássica emitida pelas caixas de som do kit multimídia de um computador. Da grande janela da sala, chegava ao interior do recinto uma amálgama de sons que se confundiam entre o barulho de carros, motos, ruídos de vozes entrecortadas, latidos de cães e o som fugidio de músicas, que se podia deduzir advindo do interior de veículos que passavam pela avenida que havia logo em frente.
    No teto da sala havia uma luminária com duas lâmpadas, que difundia por toda ela uma luz fluorescente muito alva, o que indicava que a pessoa que ali residia era afeita ao hábito da leitura, pela boa iluminação que o local dispunha.
    Havia também um jogo de sofá de cor bege quase na entrada da porta; no chão ao lado do sofá havia um cesto onde estavam empilhados jornais e revistas; mais ao canto encontrava-se um barzinho com várias garrafas de bebidas enfileiradas, onde se podia encontrar vinhos, uísques e vodcas; no centro da sala havia uma grande mesa com vários livros empilhados uns sobre os outros.
    Defronte a um computador, podia-se divisar a figura de um homem que aparentava cerca de trinta anos. Seu nome era Miguel e parecia digitar algo num editor de textos. O mesmo estava sozinho - mas se alguém pudesse observá-lo - notaria que o comportamento de nossa personagem era no mínimo estranho.
    Em intervalos de tempo mais ou menos curtos, interrompia a digitação do texto abruptamente, no que deletava com a tecla back space o que já havia sido escrito, para digitar tudo novamente; ao lado da mesa do computador havia um calhamaço de folhas que consultava em pequenos lapsos de tempo e que pareciam conter dados estatísticos; estranhamente Miguel lia uma página e parecia cumprir um ritual de ter que lê-la várias vezes seguidas; de momento em momento olhava para o celular com o intento de saber as horas, mas a ação se repetia tantas vezes, que nosso interlocutor não parecia acreditar no que o visor do telefone lhe informava. Todas essas ações as fazia repetidas vezes e lhe pareciam causar grande desconforto.
    Parecendo não suportar mais aquele estado, Miguel parou de digitar o texto, salvando o arquivo e, levantando-se da cadeira, caminhou até a janela de onde se podia ouvir o barulho das ondas quebrando nos rochedos.
    Era a praia de Ipanema. De olhos fechados, com a face suarenta, Miguel parecia sorver todo o frescor daquela brisa marítima. Passados alguns minutos - em que parecia mais aliviado - o mesmo pegou o celular do bolso da calça e fez uma ligação.
    Ligava para Fernanda, moça que morava na Barra da Tijuca e com quem Miguel já se relacionava há alguns meses. Depois de duas ou três chamadas, a pessoa do outro lado da linha atendeu.
    - Alô - atendeu Fernanda.
   - Oi amor - respondeu Miguel - será que podia te ver hoje?
  - Claro, meu bem... Estava aqui deitada lendo um livro, pode vir que estou te esperando.
    - Está bem, daqui mais ou menos quarenta minutos estou aí... Beijos!
   - Beijos! - respondeu Fernanda desligando o telefone.
    Depois de desligar o telefone, Miguel então foi se arrumar. Fernanda além de namorada, era uma espécie de confidente com quem desabafava suas "pirações". A bem da verdade, nem sempre a moça conseguia compreender muito bem o que ele lhe relatava, mas não se importava de nestas horas fazer as vezes de "psicóloga".
  A angústia e o desconforto que Miguel sentia naqueles momentos, quase que o obrigavam a buscar a companhia de alguém para desabafar, e Fernanda entendia isto como ninguém.
   Desligou o computador; foi até o barzinho e se serviu de um copo de vinho; depois caminhou até o banheiro onde passou uma água no rosto, encheu a tampa do vidro de enxaguante bucal para fazer um gargarejo, penteou os cabelos e passou perfume.
   Findo os cuidados com a aparência, passou pela sala, pegou a carteira e as chaves do carro que estavam em cima da mesa, apagou as luzes e ao fechar a porta da sala, se dirigiu até o elevador que o levaria até a garagem do edifício.
  Passados alguns minutos, encontrava-se Miguel dentro do seu carro em direção à Barra da Tijuca. Enquanto dirigia pela avenida Niemeyer, pensava um pouco em tudo aquilo que estava acontecendo em sua vida.
  Já havia ultrapassado a "casa" dos trinta, mas aquele transtorno que sentia havia começado bem mais cedo, quando contava ainda onze ou doze anos de idade. Primeiro eram as ideias fixas, negativas, quase que intrusivas mesmo a lhe infernizar o íntimo. Alguns anos mais tarde, começariam os rituais: amarrar e desamarrar o cadarço do tênis várias vezes; se ver em um ambiente e de repente se deparar contando os azulejos das paredes; lavar excessivamente as mãos.
  No começo não sabia como classificar aquilo; supunha que se tratavam de superstições e a ideia de que tivesse algum transtorno mental apavorava-o imensamente, por isso jamais confidenciara o que sentia aos seus pais, irmãos ou amigos. Acreditava que tudo aquilo não passava de manias ou qualquer coisa parecida, menos loucura.
  Já com quase dezoito anos, quando ingressara na universidade, resolvera então procurar um psiquiatra e relatar-lhe todos aqueles sintomas que o incomodavam. O diagnóstico do profissional revelou ser ele portador do transtorno obsessivo-compulsivo, ou TOC, terminologia também adotada pela especialidade.
  O médico disse-lhe ainda que poderia amenizar o desconforto de todos aqueles pensamentos intrusivos e rituais com a conjugação de fármacos e psicoterapia.
  Desde então Miguel trilhara um árduo caminho de terapias, psicotrópicos e leituras, que lhe acenava a tão sonhada cura e a tranquilidade psíquica que almejava. Mas tudo em vão. É bem verdade que louco nunca ficara, nunca tivera nenhuma espécie de surto e aos olhos do mundo parecia uma pessoa normal como qualquer outra, mas hoje o TOC de Miguel evoluíra tanto que o mesmo se encontrava contando quantas letras as palavras possuíam, não pensando mais por imagens, e sim por palavras.
    Todas estas reflexões foram interrompidas quando avistou a praça do Ó, já no bairro da Tijuca. Do interior do veículo pôde avistar a moça na sacada de seu apartamento no 3º andar. Estacionou o carro, atravessou a rua e após ser identificado na portaria, subiu até o seu encontro.
    Depois de tocar a campainha por duas ou três vezes, Fernanda abriu a porta da sala. Ao ver a moça, Miguel por alguns instantes esqueceu tudo aquilo que o atormentava.
  Fernanda parecia-lhe imensamente bela aquela noite. Antes de adentrar porta adentro - numa rápida olhadela - contemplou-lhe a imagem da cabeça aos pés.
   A moça trazia um sorriso simpático aos lábios que, pintados com um batom vermelho, realçava ainda mais o viço daqueles beiços carnudos; os pequeninos - mas penetrantes - olhos negros traziam um brilho de contentamento e voluptuosidade; os longos cabelos castanhos escorriam-lhe pelos ombros, chamando a atenção para a mini-blusa que destacava a proeminência dos seios e deixava a mostra o abdômen nu; podia-se ainda observar o torneado das pernas bronzeadas metidas dentro de pequeno short.
    Ao Miguel entrar, ambos trocaram um beijo na boca, onde o rapaz jogou as chaves do carro em cima de pequena mesa posta ao centro da sala, se atirando no sofá.
  - De novo aquelas ideias meu amor?! - interrogou Fernanda entre a curiosidade e a perplexidade.
   - De novo benzinho - desabafou Miguel com um suspiro. Não aguento mais tantas ideias fixas, tantos rituais, ficar pensando tantas coisas sem sentido!
   - Meu amor - principiou a dizer a moça, sentando-se no sofá com os joelhos dobrados - por que você fica pensando todas essas coisas sem nexo?
    - Não sei amor, não consigo me controlar - respondeu afagando-lhe uma das mãos, levando-a até a boca, onde ficou a beijá-la em pequenos intervalos.
   - Para te dizer a verdade - continuava a moça - nunca consegui compreender muito bem a natureza destas tuas ideias fixas ou negativas, como tu mesmo gosta de chamá-las.
   Miguel olhou para a moça por alguns instantes, onde a mesma prosseguiu:
   - Não te parece que apenas o que é racional é real? - finalizou com certa inflexão na voz.
  - Sim, minha razão corrobora teu raciocínio... Porém, tais ideias me provocam um desconforto tão grande, um sentimento de ansiedade que não consigo controlar, um estado depressivo que literalmente me "derruba".
    - Ora Miguel - respondeu ela afagando-lhe os cabelos - está na hora de você dar um basta em tudo isto... Seja senhor da sua mente!
    E levantando-se, puxou-o até a sacada do apartamento. Dali podiam observar o luzir dos diversos edifícios e casas ao redor.
    - Meu amor, quanta coisa maravilhosa nos oferece a vida! - exclamou Fernanda circunvagando os olhos pela parte da cidade do Rio de Janeiro que podiam contemplar naquele momento.
    "Observe a beleza da noite, o brilho das estrelas... Pense um pouco em nós dois - disse achegando o busto ao peito do moço - tente não ficar se martirizando por coisas ou ideias que simplesmente não existem no mundo concreto".
    Imprimindo significativa pausa à sua fala - no que Miguel aproveitou para ir buscar com os lábios o seu pescoço - continuou:
    - Se você quer realmente ficar comigo, não quero mais saber desse assunto. Afinal de contas, tu mesmo não dizes que nosso amor é tudo o que importa na vida?
    - É verdade amor - concordava o rapaz enquanto acariciava-lhe os cabelos - tenho sido um fraco; devia pensar mais na afeição que sentimos um em relação ao outro.
    - São coisas assim que quero ouvir dessa boca. Vamos entrar? - inquiriu com um sorriso nos lábios.
    Os dois namorados então retornaram ao interior da sala, onde Fernanda fechou a porta que dava acesso à sacada do apartamento. Pediu que o moço aguardasse ali, pois iria à cozinha buscar uma cerveja.
    Depois de alguns minutos, voltava ela com uma garrafa de cerveja às mãos e dois copos. Serviu Miguel - servindo-se também - e colocou a garrafa em cima da pequena mesa.
   Ficaram então a conversar trivialidades que havia se passado naquele dia. Miguel relatava-lhe que a análise que a fundação para a qual trabalhava havia encomendado, estava quase conclusa: tratava-se de um estudo sobre a inserção do negro no mercado de trabalho do Rio.
    Fernanda, por sua vez, foi lhe contar o que havia se sucedido durante o dia na boutique. Relatou-lhe o pouco movimento do comércio; o seu desconforto em ter que conviver com uma colega de trabalho que lhe tinha aversão; os comentários de algumas funcionárias sobre uma delas que tinha se separado e as especulações sobre os reais motivos da separação.
   Os dois riam; se acariciavam; trocavam comentários sobre assuntos diversos, de tal forma que se aquele leitor do início da narrativa pudesse observar Miguel agora, notaria a fisionomia de uma pessoa transformada; feliz da vida; radiante de alegria em razão da companhia de que privava.
    Durante aqueles momentos - entre um comentário, beijos ou risos outros - Miguel guardava a impressão em seu íntimo de que a felicidade era um estado de consciência e de que não importa tanto o caráter negativo de uma ideia, mas sim a importância de que damos a ela.


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