"Não importa o que fizeram com você. O que importa é o que você faz com aquilo que fizeram com você". Sartre

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Um Pouco no meu Lugar - Romance



                                       Um Pouco no meu Lugar - Romance


1 – ME APRESENTANDO

            O alarme do rádio-relógio soava irritantemente. Abri os olhos algo sonolento e esgueirando a cabeça, pude verificar que já eram seis horas da manhã. Era necessário acordar, ou chegaria atrasado na escola.
            Enquanto me arrumava, podia ouvir os gritos da minha mãe, que esbravejava que se eu não me arrumasse depressa, perderia a carona do vizinho – Seu Joel – encanador que fazia bicos em vários edifícios da zona sul do Rio de Janeiro.
            Saí do banheiro e ao entrar na cozinha, dei de cara com a minha mãe, que estava a passar manteiga em alguns pães:
            - Menino – disse com a cara fechada – você não aprende que tem que levantar mais cedo? – Perguntava irritada. Será que não vai entrar na sua cabeça que a única chance que um negro pobre tem de vencer na vida é através do estudo?
            Pronto! – pensei comigo mesmo – já estava àquelas horas da manhã, minha mãe lembrando minha cor e condição social. Antes mesmo de começar o dia, já me sentia triste por dentro, devido ao fato daquele sermão me fazer pensar na minha vida de adolescente pobre, favelado e negro.
            Engoli o último pedaço de pão que tinha nas mãos, dei uma golada no restante de café no copo e passando a mão na mochila que se encontrava em cima do sofá da sala, deixei nosso pequeno barraco na Rocinha, para descer algumas ruas do morro em direção ao barraco do Joel.
            Minha mãe ainda me gritou - desejando boa aula – ao lado dos meus dois irmãos menores, Miriam e Felipe, cujos semblantes ainda carregados de sono, acenavam alegres em minha direção.
            Também acenei para eles, mas quando olhei para o relógio e vi que este já marcava seis e meia, tratei de apressar o passo por aquelas ruas estreitas da rocinha.
            Enquanto caminhava, cruzei com alguns “soldados” que faziam a segurança de um ponto de drogas que ficava numa rua abaixo. Enquanto passava, eles ficaram me encarando com os semblantes fechados, no que resolvi abaixar o rosto e fazer de conta que não os via, para que não interpretassem algum olhar de minha parte como um ato de provocação.
            Depois de alguns metros, ainda pude ouvir suas risadas de sarcasmo, que expressavam o falso poder de quem gosta de intimidar os outros pelo fato de portar uma arma.
            A propósito, deixe eu me apresentar. Meu nome é Marcelo Arantes Silva, sou o filho mais velho de três irmãos e moramos todos com a minha mãe, conhecida popularmente na Rocinha como “Cláudia da faxina”. Minha mãe é diarista e costuma trabalhar três ou quatro vezes por semana em casas na Barra da Tijuca.
            Meu pai nos abandonou quando eu ainda era pequeno, se chamava Gilberto e minha mãe diz que acha que ele voltou para o nordeste, de onde tinha vindo para trabalhar na construção civil no Rio. Os dois se conheceram num hotel em que ela trabalhava, em cuja reforma meu pai era um dos operários.Tenho quinze anos e curso o 1º colegial numa escola pública do Estado, próxima aqui da Rocinha.
            Ia continuar contando mais algumas coisas da minha vida, mas esta breve apresentação vai ter que ser interrompida, pois o Joel acabou de acenar de dentro do seu Chevette para mim. E pela cara dele, estamos atrasados, ou melhor, eu o estou atrasando! Mais de qualquer forma amigo leitor, já fomos apresentados.

2 – A ESCOLA

            Enquanto descíamos as ruas da Rocinha rumo à Auto Estrada Lagoa-Barra, Joel ia comentando sobre as eleições que aconteceriam naquele mês de outubro. Ele era um homem de porte físico avantajado; um grande bigode emoldurava-lhe o rosto, cujos grandes olhos negros realçavam o poder de sua fala no convencimento da pessoa que o escutava e, o sotaque nordestino, não escondia de ninguém sua origem.
            - Veja bem Marcelo – argumentava convicto – os políticos prometem, prometem, prometem, mas o que eles cumprem? Não temos acesso a um bom serviço de saúde; as escolas públicas estão cada vez piores... E emprego? Olhe para o meu caso, faz dez anos que eu vivo de fazer bicos!
            - É Seu Joel – respondi por minha vez – acho que todos os brasileiros, principalmente nós jovens, estão desiludidos com os políticos. Mas penso uma coisa também – contra-argumentava enquanto Joel me ouvia atento – em todos os setores da sociedade encontramos maus exemplos, da mesma forma que há maus políticos, há maus médicos, maus engenheiros, maus advogados, e por aí vai. Temos que pensar também que há políticos honestos que se preocupam com o povo e que querem melhorar o Brasil.
            - Concordo com você Marcelo – dizia com um sorriso no rosto – e acho que está principalmente nas mãos de vocês jovens construir um novo Brasil, mais igualitário, justo e solidário.
            Enquanto ouvia Joel fazer outros comentários sobre a política, aproveitava para observar a beleza do Rio de Janeiro. Daquele céu azul anil, reluziam raios de sol por toda a cidade. Gaivotas voavam no céu, em exibições aéreas de graça e beleza.  Podíamos sentir a brisa marítima banhando nossos rostos com o frescor da manhã. Pelos passeios, viam-se cariocas apressados rumo ao trabalho; pessoas se amontoavam dentro dos coletivos; homens e mulheres abriam as portas de suas lojas e comércios.
            Estava tão entretido em minha observação, que nem percebi quando Joel parou o carro em frente da escola.
            - Muito bem – disse puxando o freio de mão – está entregue!
            - Obrigado Seu Joel – agradeci abrindo a porta – até amanhã!
            Despedimo-nos e ele seguiu com seu carro, disputando uma vaga apertada no trânsito da cidade maravilhosa.
            Olhei para o relógio, eram sete e meia. O portão só ficava aberto até sete e dez. Teria que passar pela Patrícia, uma das supervisoras, e ela era simplesmente o bicho! Bati no portão e depois de alguns instantes uma servente veio atender. Olhou-me carrancuda, no que gritou:
            - Chama a Patrícia, mais um atrasadinho!
Ela me mandou entrar e ficar esperando perto do portão. De longe avistei seu vulto singular, que não era muito difícil de distinguir devido sua magreza. Mulher enérgica, de pulso firme e que não dava moleza para aluno, era também apelidada de “Bambu”, numa referência ao tamanho e espessura da haste daquela planta.
            - Está achando que aqui é a sua casa, onde você pode entrar a hora que quiser? - perguntou ríspida.
            - Desculpa Dona Patrícia, acabei me atrasando – respondi com a cabeça baixa.
            - Quase todo santo dia você está se “atrasando”. Amanhã não adianta que não entra, se chegar atrasado vai ter que voltar para casa. Anda, vai logo para a sala!
            Mas do que depressa, encaminhei-me para o corredor que dava acesso ao 1ºC, a sala que eu estudava. Quando cheguei à porta estava fechada, dei três toques, pedi licença – no que o professor consentiu – e adentrei o interior da mesma.
            Vários dos meus colegas gritaram:
            - Ê sete horas!
            Depois disso, a sala inteiro em coro repetiu:
            - Ê sete horas! Ê sete horas! Ê sete horas!
            O professor interrompeu a chamada e repreendeu a todos. Restabelecido o silêncio, retomou a chamada de nomes. Eu costumava sentar na terceira carteira da primeira fila, porém quando cheguei, o Pedro – garoto conhecido por sua fama de brigão – estava sentado no meu lugar:
            - Saiu ao vento, perdeu o assento. Vai sentar lá no fundo seu preto atrasado!
            Ele havia pronunciado aquelas palavras de modo que o professor não as ouvisse. Elas me cortaram fundo e acho que doeria menos ter levado um soco. Dirigi-me cabisbaixo para o fundo da sala, onde havia alguns lugares vagos.
            A aula era do Miguel - professor de História – que começou uma explanação sobre o chamado período pré-colonizador, compreendido de 1500 a 1530, onde os portugueses pouco interessados em realmente povoar o Brasil, faziam à exploração predatória do Pau-brasil em diversos pontos do litoral brasileiro.
            Depois de dez ou quinze minutos de explicação da matéria, Miguel aproveitou para fazer uma “ponte” do passado com o presente, lembrando aos alunos que os recursos naturais se esgotam – a exemplo do próprio pau-brasil - e, portanto, se não respeitarmos nosso planeta, o mesmo daqui a algumas décadas pode se tornar uma morada inóspita para a raça humana.
            Ele parecia disposto a prosseguir com o assunto, mas o sinal acabava de tocar. O segundo horário iria começar.

3 – EDUCAÇÃO SUCATEADA

            Já estávamos no final de setembro, quase oito meses de aula já haviam transcorrido. Os alunos da minha escola eram quase todos da Rocinha ou de favelas próximas. Os poucos que eram da Barra da Tijuca, geralmente eram aqueles garotos que não gostavam de estudar e que os pais estavam cansados de jogar dinheiro fora.
            Sentia que havia um sentimento de derrotismo da parte da maioria dos alunos, pois todos sabiam que era bem mais difícil disputar vagas nas Universidades gratuitas – Federais e Estaduais – em relação aos alunos das escolas particulares que tinham uma educação diferenciada.
            Certa vez no recreio, estávamos numa rodinha conversando e o Reinaldo – colega de sala que viera de uma escola particular – comentara conosco que o esquema da escola particular consistia na carga horária obrigatória de manhã; todas as tardes havia reforço nas disciplinas que os alunos tinham dúvidas, além do que toda semana havia prova de determinado conteúdo.
            Por aí se via como a educação particular e paga a preço de ouro pela classe média e alta, estava há anos-luz da educação pública. O próprio sistema de avaliação da escola pública, que distribuía o montante dos pontos do bimestre em 40% para trabalhos e participação e 60% para provas, havia contribuído em muito para a má-qualidade atribuída ao ensino público e gratuito. O resultado desta concepção de educação era que vários alunos estavam chegando ao 1º colegial como analfabetos funcionais.
            Além disso, também sentíamos que os professores não tinham muito estímulo, devido à baixa remuneração que recebiam. Muitos deles tinham que lecionar em pelo menos duas escolas para sobreviver, sem contar aqueles que vendiam roupas e bugigangas para poder complementar a renda. O resultado disso eram aulas ruins; descaso para com os alunos e o cansaço visível de alguns que lecionavam a noite e tinham que estar ali de manhã. A profissão de professor andava tão desvalorizada, que eu não conhecia nenhum colega que dizia querer ser professor quando se formasse.
            Quem acabava de entrar na sala para iniciar o segundo horário era o Ernane, professor de Física. Vários alunos estavam de pé, alguns conversavam sentados em pequenas rodas e outros mexiam no celular.
            Ernane saudou a sala com um bom dia, porém foram poucos que retribuíram a sua saudação, pois a maioria dos alunos nem percebera a sua presença ali. Ele então deu alguns gritos pedindo ordem, mas aí que os alunos faziam questão de conversar mais alto ainda. Alguns até o mandaram calar a boca.
            Ele então começou a colocar alguns para fora da sala, mas muitos deles não estavam nem aí, saíam dando risadas e fazendo gracejos. Depois de uns quinze minutos tentando organizar a sala, ele iniciou a aula.
            Porém, Física era algo muito distante para muitos daqueles que estavam ali, a maioria dos alunos abaixava as cabeças em suas carteiras, enquanto o professor explicava os princípios da Hidrostática.
            Eu fazia força em prestar atenção na explicação, mas percebia que exatas não era o meu forte, gostava mais das matérias na área de humanas. Mesmo assim, me esforçava em aprender as matérias em que tinha dificuldade, pois sabia que no vestibular todas seriam cobradas e as exatas geralmente tinham um peso de nota maior que as humanas e biomédicas.
            A aula transcorria sem comentários dignos de registro, quando notamos uma grande confusão vinda do pátio. Nisto, quase todos os alunos saíram da sala, apesar do Ernane pedir que todos ficassem em suas carteiras.
            Eu também saí e fiquei olhando um pequeno amontoado de pessoas no pátio. Pude distinguir uns três alunos a bater num homem, que apesar de não conhecer, julguei ser um professor.
            A Patrícia chegou e puxou os três pelo braço, que se dispersaram entre a multidão de alunos que ali se amontoaram, deixando o homem no chão a limpar a camisa pisoteada e a ajustar os óculos no rosto.
            Finda a confusão, o professor pediu a todos que retornássemos para dentro da sala.

4 – FERNANDA

            O relógio aproximava-se das onze e meia. Estávamos todos descontraídos, já com os materiais guardados e apenas esperando o sino bater. Assim que este soou, o professor de Química desejou um bom dia a todos e saímos à feição de estouro de boiada.
            O assunto que predominava na saída, era a briga que havia acontecido no 2º horário. O que se comentava era que o homem era um professor substituto do 3º colegial, mas havia várias versões para a mesma história.
            Conversava com um colega, quando a vi debaixo de uma árvore junto a algumas garotas. Era Fernanda, que também me viu e acenou para mim, chamando-me para onde estava. Despedi-me do colega e então caminhei em sua direção.
            Fernanda era uma garota do 2º colegial, que já há algum tempo me dava algum mole. Era muito simpática comigo, me cumprimentava sempre que me via, porém eu não sabia distinguir direito se aquilo era apenas amizade ou uma paquera. Acho que o que influenciava um pouco também eram as minhas “neuras”, já que estava sempre com um pé atrás em relação a me aproximar dela por ser negro e pobre, enquanto ela era branca e diziam que morava na Barra.
            - Oi Marcelo! – disse beijando-me o rosto.
            - Oi Fernanda! – respondi retribuindo-lhe o beijo. – Tudo bom com você?
            - Melhor agora que você está aqui! – exclamou com um sorrisinho malicioso.
            Puta merda – pensei comigo mesmo – acho que é hoje que eu mordo essa menina!
            - Vai pegar o busu?
            - Não - respondi vacilante, me lembrando que não tinha dinheiro para o ônibus - às vezes gosto de andar a pé para me exercitar um pouco. – Justifiquei meio sem graça.
            Ela pareceu querer segurar o riso, mas refez o semblante descontraído e disse séria:
            - Eu também, então vamos juntos. Nisto demos um tchau para suas amigas e nos pusemos a caminhar.
            Estava bastante nervoso, procurando pensar no que poderia ir conversando com ela pelo caminho. Fernanda então puxou assunto:
            - Você viu aquela briga que aconteceu hoje na escola? Indagou fixando-me os olhos.
            - Ah, sim... Você sabe o que foi aquilo?
            - Segundo eu ouvi dizer era um professor substituto do 3º colegial, que ao colocar três alunos para fora da sala, estes acharam que havia sido um ato autoritário da parte dele e resolveram ir à forra.
            Fez pequena pausa – passando a mão pelo cabelo – no que prosseguiu:
            - Derrubaram o professor dentro da sala, o arrastaram para o pátio e começaram a bater nele.
            - Você conhece os alunos? – perguntei impressionado.
            - Sim, conheço... São péssimos alunos, que estão sempre arrumando confusão com os outros lá na escola. Acredito que desta vez serão expulsos.
            Caminhávamos pelas ruas da Barra, no que Fernanda mudou de assunto:
            - Marcelo, você mora aonde?
            Aquela era uma pergunta crucial para mim. Lembrei-me das aulas de história onde o professor havia dito que o problema da humanidade consistia no fato de que vivíamos numa sociedade de classes. Fernanda pertencia a uma classe social que não era a minha. Tinha medo que ela me horrorizasse ao saber que eu era favelado. Mas também pensava que se íamos iniciar alguma coisa, deveria ser na base da verdade. Por isso, respondi sinceramente:
            - Moro na Rocinha - disse olhando dentro dos seus olhos.
            Neste momento, aqueles pareciam brilhar de ternura pela minha sinceridade e pela coragem de assumir quem eu era.
            - Que legal! – respondeu com um sorriso aos lábios. – Eu moro aqui na Barra, você vê algum problema em sermos amigos?
            - Só se você tiver medo de eu te assaltar!
            Ambos demos uma risada. Ela me puxou pela mão, onde nos sentamos num banco de uma pracinha próxima. Naqueles momentos não falávamos nada um ao outro, apenas nos olhávamos fixamente.
Quantas coisas um olhar diz sem que se diga uma palavra – aprendia eu naquele momento – quantas falas estão presentes numa expressão facial!
            Aquela contemplação muda durou alguns minutos, que eu não saberia precisar quantos. Só sei que num dado momento, nossos rostos se aproximaram e nossos lábios buscaram um ao outro.
            Ao final daquele beijo, me sentia o homem mais feliz do mundo. Estava eu ali com aquela gata, que estava comigo pelo que eu era e não pelo que eu tinha. Depois disso, ficamos conversando durante um bom tempo, no que ela falou:
            - Tenho que ir para casa. Minha mãe não gosta quando chego atrasada para almoçar.
            - Também tenho que ir – respondi olhando para o relógio – me espera amanhã na entrada do colégio?
            - Se eu conseguir chegar até as sete e dez! – disse sorrindo.
            - Então igual a mim mesmo! Respondi abraçando-a.
            Despedimos-nos com mais um beijo e então peguei o caminho da Rocinha.


5 – TIROTEIO NA ROCINHA

            Estava chegando à Rocinha, quando vi várias viaturas policiais paradas na entrada da Favela. Quem estava descendo do almoço para o trabalho era revistado e os policiais não estavam deixando ninguém subir. As pessoas que estavam nas proximidades – parecendo já prever o que poderia acontecer - e que não podiam subir a favela, tratavam de se posicionar atrás de algo que as protegessem, como uma banca de jornal, o quiosque de uma operadora de telefonia celular ou simplesmente se abaixavam rente aos muros; as portas dos comércios baixavam estridentes; os moradores dos prédios fechavam suas janelas.
            Como de certa forma estava acostumado com aquelas cenas, procurei a sombra de uma árvore próxima, mas antes mesmo que eu me encostasse ao seu tronco, esperando o desfecho daquela situação, uma saraivada de balas começou a ser disparada.
            Os policiais sacaram suas armas e alguns que estavam munidos de fuzis posicionados atrás das viaturas, de postes ou pontos estratégicos, começaram a revidar os tiros.
            Um policial gritou:
            - Deita no chão garoto! Quer levar um tiro?
            Mais do que depressa me joguei ao chão e comecei a me arrastar para o passeio. O tiroteio era intenso, não saberia dizer de qual lado vinham tantos tiros; ao meu redor algumas pessoas corriam sem saber ao certo para onde; em outras se podia perceber estampado nos semblantes o terror que aquelas cenas provocavam; algumas mulheres e crianças que se encontravam abaixadas pelos passeios choravam assustadas.
            Pensei comigo que mesmo deitado no chão poderia ser atingido, então comecei a me arrastar em direção a uma padaria que se encontrava na esquina. Sob aquele sol escaldante, me arrastava com dificuldade; o suor escorria abundantemente pelo meu rosto. Quando cheguei até a porta do comércio, que se encontrava semi-cerrada, adentrei o interior do recinto.
            Lá dentro devia haver umas vinte pessoas, entre funcionários, fregueses e pessoas que haviam ido se abrigar ali. Uma senhora que aparentava uns cinqüenta anos – e que deduzi ser a dona do local – me chamou para que ficasse perto deles.
            Comentei com ela e com os outros que estava voltando da escola. Enquanto conversávamos, o tiroteio comia solto do lado de fora. Ela e o marido – que me foi apresentado depois – parecendo perceber a fome estampada no meu semblante, me ofereceram pão com mortadela e refrigerante.
            Disse a eles que não tinha dinheiro para pagar, no que eles responderam com os semblantes alegres, que um estudante tem que se alimentar. Achei legal a atitude dos dois, onde aquilo me fez pensar que ainda havia muita gente boa no mundo.
            Calculo que ficamos ali dentro por uns cinqüenta minutos; por uma fresta da porta, pudemos ver nesse meio tempo a chegada da imprensa – pelos fios das câmeras que se arrastavam no chão -, a chegada do caveirão e de mais viaturas policiais.
            Num dado momento o barulho dos tiros cessou; deduzi que o caveirão havia subido a favela e dispersado os traficantes que atiravam de pontos estratégicos do alto da Rocinha. Algumas pessoas – entre elas eu – resolveram sair e ver se dava para retomar o caminho de casa ou o destino o qual havia sido interrompido pelo tiroteio.
            Do lado de fora os policiais conversavam pelos rádios; alguns comerciantes já arriscavam subir a porta de suas lojas; as pessoas e os carros voltavam a circular pela rua. Havia crescido diante daquelas cenas e de certo modo eu – como a maioria dos demais ali presentes – já estava acostumado com aquilo.
            Enquanto retomava o caminho para casa, subindo por aquelas ruas apertadas da Rocinha, brincava comigo mesmo que tiroteio no Rio era igual chuva: ele começa, se você está na rua se esconde como pode e quando percebe que já passou, você volta a fazer o que tinha interrompido por causa dele.

6 – A COMUNIDADE

         Enquanto subia o morro, ia cruzando com um ou outro morador conhecido. No semblante de quase todos, percebia-se o desconforto que aquele episódio do tiroteio provocara. A favela era um local em que sua maioria morava pessoas trabalhadoras, que um dia vieram viver no morro, por não terem um lugar para morar, pelo fato do governo não construir moradias populares para as pessoas, já que a maioria das famílias ali instaladas não tinha renda suficiente para pagar aluguel.
            Nossa comunidade enfrentava vários problemas. A Rocinha ainda não tinha um hospital próprio – numa população que já beirava 200 mil pessoas – fato que provocava o afogamento no atendimento do Hospital Miguel Couto.
            A maior favela do Rio e da América Latina - e segundo as estatísticas – uma das maiores do mundo, ainda não possuía uma quadra poli esportiva e nem sequer uma biblioteca; os moradores tinham de conviver lado a lado com as valas a céu aberto, no que precisávamos de tratamento de esgoto; também era necessário uma ampliação da estrada da Gávea, já que as condições de circulação de carros e pedestres não eram muito boas devido ao pouco espaço das ruas, onde a Rocinha precisava de melhores condições de acessibilidade, o que requeria um prolongamento e alargamento das ruas, criando áreas de estacionamento e derrubando as barreiras físicas que hoje dificultavam a circulação de pedestres.
            Também pensava comigo mesmo, que não adiantava nada obras e bem-feitorias, se as pessoas da comunidade não se conscientizassem e passassem a cuidar daquele espaço comum a todos. Atitudes como jogar lixo dentro da vala, depredação de ônibus e pichação de muros, eram coisas praticadas pelos próprios moradores e que ajudavam a enfear a imagem da Rocinha.
            Ia subindo por um beco, enquanto pensava todas essas coisas, quando senti uma mão pousar sobre o meu ombro.
            - E aí Marcelo! – disse o Jorge, um colega da Rocinha – está voltando do asfalto?
            - Tudo bem, Jorge? – respondi prontamente – estou voltando da escola, tive que esperar durante quase duas horas lá embaixo por causa do tiroteio.
            - Pois é meu irmão – falava com o semblante grave – estávamos todos lá em casa almoçando quando o tiroteio começou, de repente um projétil atravessou nossa parede, no que todos nos enfiamos debaixo da mesa.
            - Que coisa sinistra você está me contando Jorge – objetei espantado – deve ser a pior sensação do mundo.
            - Se é – replicava por sua vez – este tipo de coisa nos faz ver o quanto estamos expostos. Depois que tudo passou, meu pai desabafou que dá vontade de pegar todos nós e ir para debaixo da ponte.
            - É Jorge – dizia enquanto tentava consolar o amigo – a realidade é que vivemos no meio de uma guerra, sem ter pedido para participar dela.
            Conversamos por mais alguns minutos; quando vi o adiantado da hora me despedi do amigo e tratei de seguir para casa, pois minha mãe devia estar preocupada. Já passava das duas horas da tarde e até agora eu não havia aparecido para almoçar.
            Continuei subindo o morro e quando já estava perto de casa, resolvi parar num local que tinha uma visão privilegiada da Lagoa e do Morro do Corcovado, onde fica o Cristo Redentor.
            Aquela era uma das vistas mais bonitas que se podia ter do Rio de Janeiro. Fiquei a pensar em tudo aquilo que havia acontecido e chegava à conclusão de que era preciso uma reforma no nosso país. Uma revolução sem armas - onde à educação fosse priorizada - pois as pessoas precisavam ser conscientizadas desde cedo sobre os deveres e direitos da cidadania; se todas as crianças – principalmente das populações em situação de risco – fossem colocadas na escola, onde recebessem uma boa formação, com certeza não precisariam entrar para o tráfico de drogas e conseqüentemente teríamos menos cenas como aquelas protagonizadas na entrada da favela.
            Mas para isto acontecer, faltava vontade política dos nossos governantes.

7 – O AVIÃO

            Quando cheguei em casa, minha mãe estava na sala bastante aflita ao lado dos meus dois irmãos, que totalmente alheios aos acontecimentos, brincavam inocentemente.
            - Menino! – gritou raivosa - quer me matar do coração? Onde você estava? Mil coisas se passaram pela minha cabeça!
            - Mãe – principiei a dizer – como eu iria subir o morro se a polícia havia fechado a entrada da favela?
            - Vem cá meu filho – falou puxando-me para seus braços – da próxima vez vê se liga na casa da Fabiane aqui do lado e me avisa pelo amor de Deus que está tudo bem.
            - Quando eu tiver cartão eu ligo – respondi com uma risada – no que minha mãe desfez a carranca e ambos caímos na gargalhada.
            - Vou preparar uma mistura para você almoçar – disse indo para a cozinha – liga a televisão e assiste alguma coisa para você se distrair.
            Enquanto apertava as bochechas da minha irmã, segui o conselho da minha mãe e liguei a televisão.
            No primeiro canal passava um programa de games liderado por uma apresentadora, que era a mediadora de uma série de brincadeiras com artistas famosos. Troquei de canal, onde neste era exibido um programa de humor mexicano destinado ao público infantil. Quando meus irmãos perceberam, pararam de brincar e foram para frente da televisão, dando muitas gargalhadas das trapalhadas do protagonista e sua turma.
            Mudei mais uma vez de canal, que apresentava um programa de variedades, cujo conteúdo ia desde a leitura de manchetes de revistas e sites da web, passando por fofocas sobre a vida de celebridades, até histórias do cotidiano, cujos ingredientes quase sempre apelavam para o sensacionalismo.
            Diante dos protestos de meus dois irmãos retornei para o canal anterior, quando minha mãe gritou que o almoço estava pronto. Me sentei na mesa e comecei a comer. Ela havia preparado arroz, feijão preto, bife e salada de alface com tomates.
            Enquanto comia, minha mãe enxaguava louças. Entre uma louça e outra, ela falou:
            - Marcelo, o que você acha de arrumar um emprego temporário neste final de ano?
            Mastigava um pedaço daquele delicioso bife, no que respondi:
            - Não vejo nada de mais mãe, o problema é que não tenho nem curso de informática – disse enquanto bebia um pouco de suco.
            - Tem empregos que não exigem qualquer tipo de curso, estava pensando em algo como uma loja ou um supermercado – contrapôs enquanto enxugava um prato.
            - Está certo, minha neguinha – me levantei colocando o prato na pia - amanhã mesmo à tarde começo a procurar. Beijei-lhe o rosto, no que ela sorriu satisfeita, e fui me deitar um pouco.
            Fechei a janela do quarto, no que a escuridão inundou-o por completo, deitei na cama e fiquei pensando nos acontecimentos daquela manhã e início de tarde. De tudo o que havia acontecido, a melhor coisa era Fernanda. Sua imagem povoava o meu pensamento agitado e não via a hora do dia acabar, para amanhã estar de novo com ela. Fiquei a relembrar seu semblante por alguns minutos, no que então virei para o lado e adormeci.

***

            Acordei com umas batidas na janela. Abri a mesma e dei de cara com o Nelson, um colega de infância que tinha ouvido falar que havia se tornado “avião” de traficantes. Cumprimentei-o com alguma reserva, no que ele retribuiu o cumprimento e perguntou-me se poderia entrar, no que meneei a cabeça afirmativamente.
Quando abri a porta, ele apertou minha mão. Seu olhar parecia desconfiado, como se quisesse sondar se no meu semblante havia estampado algum juízo de valor que pudesse estar fazendo dele, no que – algo constrangido – adentrou o interior de minha casa.
O Nelson devia ser uns três ou dois anos mais novo que eu, sua mãe havia ficado amiga da minha desde o tempo que havíamos chegado à Rocinha. Era filho único e, a exemplo da minha mãe, sua genitora também era a chefe da casa, com a diferença de que quando o ex-marido se embebedava, costumava ir à sua casa espancá-la, alegando que sabia que ela o traía com outro.
A mãe dele sofria muito com aquilo, onde começou a se alcoolizar. Acabou perdendo o emprego que tinha numa casa na Gávea e não suportando mais o marido agressor, um dia sumiu de casa sem dar notícias. O Nelson acabou ficando aos cuidados de uma tia – já que o pai acabou sendo morto num assalto - que se mudou para a casa deles na Rocinha, mas seu relacionamento com ela e o marido não era dos melhores.
Fazia alguns meses que uma vizinha havia contado para a minha mãe que o filho da Aline – era esse o nome de sua mãe – havia saído de casa por causa de desentendimentos com a tia e se tornado avião de um traficante.
Avião – na linguagem do morro – é aquele adolescente que faz pequenos serviços para o traficante, como trocar dinheiro, buscar sanduíches e transportar droga dentro da favela ou mesmo de uma favela para outra.
            Depois de entrar, sentou-se no sofá e disse:
            - E aí Marcelo?! Cadê tua coroa? – perguntou puxando assunto.
            - Deve ter ido para a igreja com os meus irmãos. Dormi à tarde e só acordei agora, nem havia percebido que já é noite – respondi levando a mão à boca para disfarçar um bocejo.
            - Faz um tempão que a gente não se cruza – observou algo triste.
            - Pois é, Nelson! – exclamei enquanto ligava a televisão – você também sumiu. Como anda a sua tia? – perguntei como se não soubesse de nada que havia acontecido com ele.
            - Eu saí de casa, Marcelo – esclarecia melancólico – não agüentava mais as humilhações por parte da minha tia. Ficava jogando na minha cara que minha mãe havia se mandado e deixado à bomba com ela.
            - Que chato, cara – disse com o semblante consternado – mas não tinha jeito de vocês chegarem num acordo?
            - Com ela não tem jeito de trocar idéia – respondia revoltado – tive que sair da minha própria casa, já que ela e o marido não tinham casa própria para morar antes de vir para cá.
            - E você está aonde?
            - Estou morando numa boca, lá me arrumaram um trampo de avião, além de ter de cuidar da limpeza do local.
            - Pô Nelson, mas essa parada de tráfico não é legal não – tentava aconselhá-lo de alguma forma.
            - E você queria que eu fizesse o quê? Só estudei até a 5ª série, estava sem casa, não tinha lugar para ir, onde ia arrumar grana para comer?
            - Cara é difícil mesmo. Mas vem cá – indaguei curioso – como funciona esse negócio de trabalhar no movimento?
            - Você está fazendo o quê? – perguntou por sua vez.
            - Nada – respondi preocupado.
            - Aê, vou buscar um dinheiro na casa de um chegado e levar para o meu gerente, não quer vir comigo? A gente vai trocando uma idéia pelo caminho.
            Meu primeiro impulso foi recusar aquele convite, mas estava diante de um amigo e me sentia no dever de alguma forma conversar com ele, a fim de tirá-lo daquele caminho.
            - Mas não é perigoso? – inquiri apreensivo.
            - Fica tranqüilo mano, acha que eu iria te meter numa roubada?
            Vesti a camisa que estava em cima do sofá, calcei o tênis e ambos saímos porta afora. Nisto, fiquei reparando o quanto Nelson andava mais magro ainda do que era quando brincávamos juntos. Vestia uma camisa surrada, um short vermelho no qual se percebia um rasgo e calçava chinelo de dedo.
            - Aê Marcelo, o movimento tem muitas funções – dizia enquanto cruzávamos aquelas ruas estreitas e mal iluminadas – eu, por exemplo, ocupo o cargo mais baixo, mas se eu subir no “conceito” dos caras, eu posso ir subindo de posto.
            - No movimento sobe-se de posto como numa empresa? – perguntei espantado.
            - É isso aê – respondeu com um sorriso – tem tipo um plano de carreira.
            - E quais são os cargos? – continuei por minha vez.
            - Depois de avião você pode subir para fogueteiro, que é o cara que fica em cima das lajes com foguetes ou rádios transmissores e avisa quando a polícia ou outro bando de traficantes inimigos entra na favela.
            - Quanto esse ganha por mês?
            - Varia de cem a duzentos reais por semana – respondeu enfático.
            - De fogueteiro você pode ser promovido a quê? – prossegui perguntando.
            - Você pode virar soldado, só que tem que ter coragem e ser bom de bala, porque troca tiro com a polícia direto, o soldado é quem faz a segurança da boca. Se perder a arma tem que dar conta, ganha de cento e cinqüenta a trezentos reais por mês.
            - Nelson, que vida mais sinistra cara, dá um jeito de sair disso – argumentei no sentido de alertá-lo – é esse o futuro que você quer?
            - Pô Marcelo, eu não queria essa vida para mim cara, mas eu não tive alternativa, a culpa é da minha tia.
            Ia continuar argumentando com ele, no intuito de dizer-lhe que não podemos culpar as pessoas pelas decisões que tomamos, quando ele fez um sinal para dois garotos que se posicionavam num beco escuro.
            Parecia ser dois soldados. Um deles respondeu ao seu gesto, que aparentava uma autorização para que prosseguíssemos. Aproximando-nos deles, Nelson trocou algumas palavras com os dois e continuamos por uma viela estreita.
            - A boca é ali Marcelo – apontou para um pequeno barraco – é só o tempo de entrar, pegar o dinheiro e sairmos fora.
            Nelson bateu na porta e ouvimos um “entra aê cumpadi”. Adentramos o interior de uma sala aonde não havia nada mais do que uma mesa e duas cadeiras. Em cima da mesa havia um boné muito maneiro, cuja aba parecia ser de acrílico e na qual estava escrito Von Dutch.
            Na sala havia duas entradas que davam acesso a um pequeno corredor que se findava num quarto o qual se distinguiam duas pessoas conversando e para outro cômodo contíguo.
            Uma das pessoas parecia se despedir e ouvimos a outra voz chamar Nelson para entrar. Ele me fez um sinal que aguardasse e seguiu pelo estreito corredor. A porta fechou-se e então fiquei a aguardar, onde resolvi puxar uma das cadeiras e me sentar.
            Findos mais ou menos dez minutos, Nelson saiu do quarto e me disse:
            - Marcelo, entra aí nesse quartinho porque tem um playboy do asfalto lá no outro quarto com o gerente da boca e ele não queria ser visto por ninguém quando saísse.
            Atendi ao pedido e, depois de alguns instantes dentro do quarto, ouvi os passos de uma pessoa que deixava a casa. Nelson me chamou para sair e pude perceber que o boné não estava mais lá. O gerente me cumprimentou e depois que Nelson se despediu dele, ambos também fomos embora.
            - Marcelo, desculpe por ter mandado você se esconder, mas neste tipo de negócio a gente não contesta nada, saca?
            - Tranqüilo Nelson – disse com o semblante aliviado de estar saindo dali – na verdade eu aceitei vir aqui com você porque queria te dizer como amigo que este tipo de vida não vai te levar a lugar nenhum.
            - Estou ligado Marcelo – respondeu como se já tivesse ouvido aquelas palavras de outra pessoa – esse tipo de vida só leva a dois “C”.
            - Dois “C”, como assim?
            - Cadeia ou cemitério – esclareceu com o semblante receoso – mas tem muita revolta aqui dentro mano. Às vezes penso que o que eu quero é me acabar mesmo.
            Chegávamos perto de casa e percebia que não havia como dissuadi-lo daquele caminho que ele resolvera trilhar. Parei numa esquina, onde disse-lhe:
            - Nelson vou ter que chegar, amanhã tenho que acordar cedo para ir à escola. A gente se esbarra por aí.
            - Falou Marcelo, outra hora eu passo aí na sua casa.
             Trocamos um aperto de mão e cada qual tomou uma direção. Caminhava um pouco chateado de ver um conhecido enveredar por aquele caminho, mas pensei comigo mesmo que para uma pessoa receber auxílio, ela primeiro tem que querer.

            8 – O DIA MAIS FELIZ NA VIDA DE UM HOMEM

            O sino soou estridente. Levantei-me rápido da minha carteira e fui para a porta do colégio a fim de ver se encontrava Fernanda, já que não havia visto-lhe nem na entrada, nem na hora do recreio.
            Resolvi esperar embaixo da nossa árvore, onde fiquei a observar naquele aglomerado de camisetas brancas se distinguia o seu vulto. Depois de alguns minutos, pude vislumbrá-la acenando para mim. Não estava com o uniforme da escola, nem tinha a mochila nas costas.
            - Oi, meu gato! – pude distinguir as palavras que gritara enquanto vinha em minha direção.
            Naquela manhã parecia mais bela do que nunca. Trazia aos lábios um grande sorriso, que pintados com um batom vermelho, realçava ainda mais os beiços carnudos a pedir beijos; os olhos – negros e penetrantes – traziam um brilho de contentamento; os longos cabelos castanhos escorriam-lhe pelos ombros; usava uma mini-blusa que destacava o volume dos seios e deixava à mostra a barriga, onde se observava a tatuagem de um cavalo marinho; podia-se ainda notar o torneado das pernas bronzeadas metidas dentro de pequeno short.
            - Oi Fernanda! – respondi tentando conter o meu ímpeto que era de me atirar contra ela e enchê-la de beijos – não veio na escola hoje?
            - A Patrícia não me deixou entrar, era a terceira vez que eu chegava atrasada, aí tive que voltar para casa e inventar uma desculpa para minha mãe.
            - Está indo para casa? – perguntei aproximando-me para afagar-lhe os cabelos.
            - Estou, quer almoçar lá em casa? – respondeu me beijando.
            - Sei lá – disse meio sem graça – ainda nem conheço a sua família.
            - Não tem ninguém em casa – objetou olhando-me nos olhos – minha mãe foi resolver umas coisas e meu pai, por causa do acúmulo de serviço na empresa, não vem almoçar em casa hoje.
            - Bom, então se você insiste – disse aceitando o convite - mas é só o tempo de almoçar mesmo, pois hoje vou começar a procurar emprego.
            - Tá legal, você manda! – falou com um sorriso gracioso.
            Pegamos o ônibus e nos mandamos em direção à Barra da Tijuca. Pelo caminho conversávamos os assuntos mais diversos. Estar ao lado de Fernanda era uma espécie de felicidade que eu não conseguia descrever direito, às vezes pensava – em lampejos de alegria - que já tão jovem havia encontrado a pessoa com quem passaria o resto dos meus dias.
            Conversávamos distraidamente, quando Fernanda me pediu que apertasse o botão de parada, pois deveríamos descer no próximo ponto. Quando deixamos o ônibus, ela me disse que caminharíamos somente mais uns três quarteirões até o seu prédio.
            Chegamos então ao passeio de um grande edifício, que era o prédio onde ela morava. Fernanda apertou o interfone e após ser identificada, o portão eletrônico foi aberto para que pudéssemos entrar.
            Adentramos por um jardim cujo pequeno passeio levava até o hall de entrada do edifício. Coqueiros e diversas plantas ornamentais – que aqui não saberia dizer o nome de cada uma delas – davam um ar de suntuosidade e beleza à entrada do condomínio. Havia ainda um parquinho para crianças e pequenos bancos de pedra onde as pessoas podiam descansar à sombra das árvores.
            Quando entramos – transpondo grande porta de vidro fumê – no hall do edifício, Fernanda foi cumprimentada pelo porteiro do edifício; porém quando o mesmo dirigiu o seu olhar para mim, pude perceber a transmutação de suas expressões faciais; me olhava de cima em baixo, como se não acreditasse na cena que seus olhos presenciavam. Percebendo meu constrangimento, Fernanda olhou sério para ele, no que o mesmo abaixou os olhos.
            Não conseguia disfarçar o mal estar que aquela situação havia me provocado, enquanto esperávamos o elevador, ambos ficamos em completo silêncio, apenas olhando um ao outro.
Nos seus olhos parecia haver uma súplica; um pedido de perdão por eu ter tido de passar por aquilo. Também encarava-a fixamente, onde lhe respondia com olhares tenros – como se quisesse lhe dizer - que ela não tinha culpa alguma do mundo racista em que vivíamos.
A porta do elevador se abriu e ela me puxou pelo braço. Após destrancar a porta, adentramos em grande sala - muito bem mobiliada por sinal – onde perto da janela podia-se ver um jogo de sofá; no centro havia uma mesa em cerejeira, com tampo de vidro e várias cadeiras e mais ao canto havia um barzinho com três bancos e que continha as mais variadas bebidas.
            - Enfim sós – disse com um suspiro – no que cruzou as mãos pelo meu pescoço, me oferecendo os lábios ardentes.
            Puxa vida! – pensava ao calor daqueles beijos – será que isto está acontecendo comigo mesmo?
            Ficamos a nos beijar por algum tempo, no que perguntei-lhe:
            - Bom, então vamos almoçar?
            - É que a empregada não veio hoje, desde ontem minha mãe havia-a dispensado, pois passaria o dia fora hoje com meus irmãos.
            O almoço era só uma desculpa – pensei comigo mesmo – naquele momento parece que o tempo havia parado lá fora e o mundo com seus problemas não existiam mais.
            Fernanda foi me puxando pelo braço, no que falou:
            - Deixa eu te mostrar o resto do apartamento – disse dando uma piscadela com o olho e abrindo um sorrisinho nos lábios – larga de ser acanhado.
            Ela foi me puxando pelo corredor, onde fomos passando pelos quartos da casa, até chegarmos ao seu. Entramos – no que ela fechou a porta e passou a chave – e ficou a me olhar sorridente.
            Meu coração parecia querer saltar para fora, olhava para ela e ficava pensando no que deveria dizer, quando a mesma se aproximou - encostando os bustos no meu peito – e começamos a nos beijar e acariciar, esquecendo quaisquer escrúpulos.
            Despiu-se da blusa, no que virou o corpo para mim convidando-me a beijar-lhe as costas. Em beijos intermitentes, parecia querer esquadrinhar com a boca cada mínima parte de seu dorso; sua respiração era ofegante, podia sentir-lhe na pele o calor do corpo, onde virando-se novamente para mim, busquei-lhe os lábios carnudos para que pudesse saciar aquele verdadeiro vulcão que se apoderava de mim.
            Depois de alguns minutos - em que trocamos carícias como nunca antes – ela levantou-se e caminhou até a parede, onde fiquei a contemplar seu completo despir. Sorriu para mim, no que virou o braço em direção ao interruptor, apagando a luz.

9 – À PROCURA DE TRAMPO

            Despedimo-nos com um beijo apaixonado; Fernanda ficou com a porta aberta me observando até que o elevador chegasse. Num aceno de mãos trocamos um carinhoso tchau, no que a porta do elevador se fechou e o mesmo me levou até o térreo.
            Naquela tarde de quinta-feira, me sentia o homem mais feliz do mundo. O elevador abriu sua porta e caminhei em direção à saída do edifício. Meu estado de espírito era de tamanha felicidade, que passei pela portaria indiferente ao olhar do porteiro, onde depois de fechar o portão, me vi no passeio.
            Por alguns minutos fiquei ali parado pensando em tudo o que havia acontecido; transeuntes que andavam pela calçada passavam por mim apressados; carros iam e vinham naquela rua de mão dupla; no céu se observava um helicóptero sobrevoando os edifícios.
            Resolvi então caminhar rumo a uma avenida comercial próxima dali, a fim de iniciar minha procura de emprego. Enquanto caminhava, observava pelo caminho a beleza das árvores; reparava nas pessoas que passavam por mim e, por um momento, meu desejo era comunicar-lhes a felicidade que se apossava de mim.
            Olhava as vitrines das lojas; reparava nas fachadas dos prédios; contemplava a arborização do bairro; parecia que para mim naquele momento tudo e todos tinham alguma beleza especial. Meu corpo estava ali andando por aquela avenida, mas meus pensamentos eram todos para Fernanda.
            Parei em frente a um grande magazine; resolvi entrar e perguntar se não estavam precisando de funcionários. Logo na entrada uma vendedora veio me atender, perguntei se estavam contratando funcionários temporários para o natal; ela me respondeu que seguisse até o fundo da loja e conversasse com o gerente.
            Segui o caminho que ela havia me indicado, passando por prateleiras e stands que continham de quase tudo: eletrodomésticos, móveis, aparelhos eletrônicos variados e uma seção de cama, mesa e banho. Chegando ao fundo da grande loja, havia um homem – que aparentava cerca de trinta anos - numa mesa defronte um computador.
            Encaminhei-me para ele, perguntando-lhe se podia tomar um minuto de sua atenção. Ele sorriu gentilmente, no que fez menção de me atender, se nesta hora não tivesse sido interrompido por um funcionário da loja que lhe trazia uma ficha para análise de liberação de crediário.
            - Sente aí meu jovem – disse atencioso – só vou resolver uma coisa e já volto para atendê-lo.
            Ele e o vendedor se afastaram e resolvi olhar alguns Ipods que estavam expostos em uma prateleira. Manuseava um ou outro que me chamava mais a atenção, quando percebi a presença de um segurança perto de mim.
            O mesmo fingia olhar o movimento da loja, mas sempre virava o rosto para mim desconfiado, fixando sua atenção em meus movimentos e particularmente nos bolsos da minha calça. Será que ele estava pensando que eu iria roubar alguma coisa – pensava constrangido sob aquele olhar coativo – e pelo motivo de eu ser negro?
            Coloquei o aparelho no lugar e me sentei na cadeira da mesa do gerente, no que ele recebeu um chamado pelo rádio e caminhou em direção à outra parte da loja. Aquilo havia me deixado bastante chateado, quando o gerente chegou e começamos a conversar.
            Depois de uns dez minutos de conversa, onde lhe perguntei se precisavam de funcionários e ele me fez algumas perguntas como que idade eu tinha; onde morava; se já tinha alguma experiência profissional, dentre outras coisas, me entregou uma ficha cadastral a qual preenchi com todos os meus dados.
            Depois que lhe entreguei a ficha preenchida, deu-me um aperto de mão, dizendo que qualquer oportunidade que surgisse a loja entraria em contato. Agradeci-lhe a atenção e saí desanimado.
            Continuei caminhando, onde pensava no quanto esse negócio de racismo era uma coisa desumana. Afinal de contas, como a cor da pele de uma pessoa pode definir o seu caráter? Por outro lado, as pessoas que passavam por mim na rua naquele momento – pardos, brancos, mulatos e negros – eram uma prova viva de que o Brasil é um caldeirão de misturas étnicas de um passado não tão distante e que fizeram de nós um povo mestiço.
            Enquanto pensava nestas coisas, percebi que me aproximava de uma loja de uma grande rede de supermercados. Resolvi entrar lá e verificar se havia alguma vaga no momento. Era um prédio muito grande, em cuja entrada deveria haver uns cinqüenta caixas de atendimento; em todos eles haviam filas enormes, pessoas com carrinhos repletos de mercadorias esperavam impacientes; garotos embalavam rapidamente as mercadorias daqueles que passavam pelos caixas.
            Me aproximei de um garoto que embalava algumas mercadorias e perguntei-lhe se havia vagas. Enquanto colocava alguns iogurtes dentro de uma sacola, respondeu prestativo:
            - Parece que um embalador saiu hoje, suba aquela escada – apontou com a mão - e dirija-se ao departamento pessoal.
            Segui suas instruções e daí a alguns minutos estava subindo uma escada. Dei de cara com uma porta onde havia uma pequena janela com um vidro, que permitia a identificação de quem estava de fora. Do lado de dentro havia uma moça, tentei falar com ela pelo vidro, mas a mesma parecia não me ouvir.
            Ela gesticulava com a mão me indicando que procurasse do lado de fora algo do lado da porta. Era um interfone, no qual pude me identificar e dizer-lhe o motivo pelo qual estava ali.
            A porta então se abriu automaticamente e adentrei o recinto. Uma garota muito simpática, com um headfone de telemarketing à cabeça me atendeu, onde expliquei-lhe que soubera que havia uma vaga de embalador em aberto.
            Ela me pediu que aguardasse, pois iria ligar para o ramal do gerente e verificar a procedência da informação. Sentei-me então em uma das cadeiras enfileiradas junto à parede, defronte à sua mesa, e fiquei aguardando enquanto ela checava com o gerente.
            Depois de desligar a ligação, ela me disse cordialmente:
            - A vaga existe sim, vire a direita no corredor e procure o “Seu Bruno”, que ele irá atendê-lo.
            Me dirigi então à sala do gerente. Na porta havia uma placa com os dizeres: “Bruno Reis – Gerente Comercial”. Bati três vezes, no que o gerente me autorizou a entrar.
            Quando adentrei a sala, ele parecia trazer no rosto um grande sorriso já preparado para a situação, porém quando me viu, notei que sua expressão fisionômica se alterou, parecendo que ali entrava alguém que não atendesse às suas expectativas.
            Percebendo que eu havia notado sua transformação fisionômica, o mesmo tratou de dissimular o grande sorriso que havia preparado antes de ter visto quem era o candidato pretendente à vaga.
            - Então meu jovem – disse com fingida satisfação - é você o candidato a nossa vaga de embalador?
            - Sou eu mesmo – respondi por minha vez – o natal se aproxima e queria arranjar um emprego temporário para ganhar algum dinheiro e também experiência profissional.
            - Preencha esta ficha aqui – entregou-me um formulário padronizado da empresa – não se esquecendo de preencher tudo o que é pedido.
            Enquanto preenchia a ficha, o gerente se ocupou de analisar algumas notas fiscais. Notava que por vezes, desviava o olhar dos papéis para mim, franzindo o sobrolho.
            Assim que terminei, entreguei-lhe a mesma, no que ele passou a examiná-la. Depois de uma rápida passada de olhos pelo papel, ele me disse sem mais delongas:
            - Nossa vaga realmente estava em aberto – dizia como quem procura palavras – mas a empresa quer esperar uma maior proximidade das festas de fim de ano para efetuar contratações, já que estas significam uma despesa extra.
            Não acreditava naquilo; a vaga existia, confirmado a mim por duas pessoas, será que só porque eu era negro, ela havia desaparecido?
            - Mas a secretaria me disse que havia uma vaga para embalador – questionei gaguejando de nervoso – por que o senhor me diz que agora não existe mais a vaga?
            - O quê você esta insinuando garoto? – interrogou ríspido. Aqui quem sabe das coisas sou eu; se estou dizendo que a empresa vai deixar para contratar nos dias mais próximos ao natal, é porque esta é a realidade.
            Indignado pela segunda situação de discriminação que sofria naquele dia, me levantei e falei:
            - Pois então, muito obrigado! E fui embora deixando-o a falar sozinho. Ainda pude ouvir as frases “volte aqui que eu não acabei de falar com você”; “seu mal-educado”.
            Fui saindo daquele supermercado com a cabeça a mil por hora. Com que direito as pessoas podiam discriminar assim os outros daquela maneira? Que crime havia cometido eu por ser negro? Começava a aprender na prática o que um professor havia explicado certa vez em aula de aula: No Brasil vivemos um racismo maquiado.

10 – HORROR À DIFERENÇA

            Já devia ser umas seis horas da tarde. Antes de subir o morro, resolvi passar pela praia de São Conrado. Sentia a necessidade de ter um momento comigo mesmo, onde de alguma forma eu também pudesse entrar em contato com Deus. Apesar de minha mãe ser evangélica, não era afeito à religião – embora respeitasse todas elas –, e quando as pessoas me perguntavam qual era a minha crença, costumava dizer que cultivava minha espiritualidade, independente de ser adepto desta ou daquela religião.
            O sol começava a se pôr no horizonte, pintando com tonalidades douradas o céu do Rio de Janeiro. Banhistas tratavam de aproveitar os últimos momentos de graça do astro-rei, se deliciando nas águas do mar de São Conrado; vendedores ambulantes andavam pela praia oferecendo o que havia sobrado da labuta daquele dia; turistas desmontavam seus guarda-sóis coloridos.
            Resolvi me sentar num banco próximo e fiquei a contemplar o pôr-do-sol. Estava muito chateado com tudo o que havia acontecido naquela tarde, embora reconhecesse que só os momentos passados juntos de Fernanda, compensavam todos os desgostos daquela tarde.
            Achava engraçado como a vida nos proporciona estes momentos antagônicos de ora felicidade, ora sofrimento. Viver também é aprender a lidar com os momentos difíceis – aprendera eu naquela tarde – e a culpa não era da vida em si, mas dos homens que constroem os preconceitos que martirizam outros homens.
            Embora não gostasse de chorar - por sentir vergonha de mim mesmo por muitas vezes estar sendo fraco diante das situações - ou porque não queria dar o braço a torcer quando alguém ou alguma coisa me derrubava, percebi que algumas lágrimas rolavam pelo meu rosto.
            Mas não eram lágrimas apenas pelas humilhações passadas naquela tarde, pois me lembrava de Fernanda e aí tinha certeza que o que caía dos meus olhos eram lágrimas de felicidade.
            Devo ter ficado naquela contemplação muda por uns quarenta minutos. A escuridão já dificultava a observação completa das pessoas e coisas, quando resolvi perguntar as horas para uma mulher que passava pelo calçadão.
            - Dez para as sete – informou simpática – prosseguindo em sua caminhada.
            Agradeci e tratei de pegar o rumo de casa, pois não queria deixar minha mãe preocupada. Num quiosque próximo iniciava-se uma apresentação de um conjunto de rock, onde pequena multidão se aglomerava em volta.
            Resolvi parar só para escutar um pouco do que eles tocavam, no que prosseguiria em meu retorno para casa. Esticava o pescoço para melhor observar, quando ouvi alguém chamar meu nome.
            - Marcelo! – dizia o Jorge alegre – o que você está fazendo zanzando aqui pelo asfalto? – perguntava descontraidamente.
            - E aí Jorge – respondi surpreso ao ver o colega – que nada meu irmão, só estava conferindo o agito que está rolando por aqui.
            - Vai subir para morro? – interrogou observando três meninas que passavam por nós.
            - Vou sim – respondi me lembrando do horário – minha mãe já deve estar preocupada.
            Iniciamos então à caminhada rumo a Rocinha. Perguntei ao Jorge – relembrando o tiroteio daquele dia – se naquela tarde havia ocorrido alguma ação policial na favela.
            - Hoje não, Marcelo – dizia rindo – graças a Deus hoje não precisei ir me esconder debaixo da mesa.
            Ambos rimos daquela ironia. Nisto, Jorge perguntou:
            - Marcelo você gosta de rock?
            - Gosto, por quê? – Indaguei pensando que ele também me compartilhava o gosto musical.
            - Mas você gosta mais de rock do que de pagode?
            - Para ser sincero com você Jorge, eu não curto muito pagode – respondi pensando aonde ele queria chegar.
            - Que isso, Marcelo – disse exaltado – você tem que gostar de pagode, que é música de negro. Vai ficar ouvindo uma música que não tem nada a ver com a sua raça?
            Não gostei daquelas palavras, minha vontade foi falar para ele que eu tinha o direito de ouvir o que eu quisesse – mas levei em consideração nossa amizade – no que respondi:
            - Aê Jorge, isto não tem nada a ver, acho que o gosto independe da cor da pele. Aliás, teve um dia que o professor de Biologia explicou que a ciência já comprovou que o conceito biológico de raça não existe.
            - Você está por fora, meu irmão – retrucou como quem não abre mão de seu argumento – nós negros temos que honrar as coisas da nossa raça!
            Caminhamos por alguns momentos em silêncio, onde depois de virarmos numa rua, ele continuou:
            - Marcelo, fiquei sabendo que você está namorando uma branca – disse com desdém – cara, definitivamente você não honra sua raça!
            Aquilo era a gota d’água! Como aquele cara podia ter uma mentalidade tão idiota? Minha vontade foi perguntar como uma pessoa pode dizer tanta besteira de uma vez só, mas me lembrei que fazendo isto seria tão intolerante quanto ele próprio. Ademais, será que todas aquelas idéias não seriam advindas de preconceitos já sofridos por ele?
            - Jorge – dizia enquanto tentava me acalmar e argumentar com ele sobre aquelas idéias preconceituosas – onde está escrito que negro não pode namorar com branco e vice-versa?
            Ele pareceu pensar um pouco, no que respondeu:
            - Ora Marcelo, vai dizer que você não está namorando uma branca para mostrar para todo mundo que você é o tal?
            - Ô Jorge, as coisas que eu faço não são para mostrar ou provar nada para ninguém. Estou namorando a Fernanda porque me amarrei nela, só isso!
            - Marcelo – disse quando íamos começar a subida da favela – esqueci que tenho que comprar cartão para o celular da minha coroa, depois a gente se cruza.
            Trocamos um seco aperto de mão, no que comecei a subir a favela. Ainda não entendia direito como uma pessoa – diga-se de passagem, com apenas quinze anos – já podia ter uma mentalidade tão preconceituosa.
            Pensava comigo mesmo que é por isso que o racismo não acaba, pois estas idéias pré-concebidas e estereotipadas vão passando de geração em geração. Com certeza o pai, familiares ou amigos diziam estas coisas para ele, onde o mesmo reproduzia estas idéias sem o mínimo senso crítico.
            Só através da educação e de leis rígidas – que punam ações preconceituosas – é que construiremos uma nação sem racismo, pensava enquanto continuava a subir o morro.

***
            O professor de Geografia explicava as conseqüências do aquecimento global. Estávamos no terceiro horário e minha barriga roncava de fome, pois tinha acordado atrasado e não havia tido tempo de tomar café naquela manhã. Esperava ansioso o recreio para poder tomar a merenda.
            - O aquecimento global – explanava o professor – é conseqüência da emissão desenfreada de poluentes químicos na atmosfera, principalmente de gases derivados da queima de combustíveis fósseis, como a gasolina e o diesel - exemplificava ele – onde estes gases formam uma camada de poluentes de difícil dispersão, causando o chamado efeito estufa.
            Fez uma pausa, no que bebeu um pouco de água de uma garrafinha, no que prosseguiu:
            - O desmatamento e as queimadas de nossas florestas e matas também têm colaborado neste processo. Este fenômeno é chamado de aquecimento global, porque os raios do sol atingem o solo e irradiam calor na atmosfera; como esta camada de poluentes dificulta a dispersão do calor, o resultado disto é o aumento da temperatura a um nível global.
            Parecendo querer concluir seu raciocínio, finalizou:
            - Ou o homem preserva a natureza para viver, ou num futuro próximo a sobrevivência da raça humana será uma coisa cada vez mais incerta.
            Apesar da importância daquela matéria e da brilhante exposição do professor, a maioria dos alunos não prestava à mínima atenção na aula. Já acostumado com aquilo, o professor olhou a sala algo decepcionado e pediu que todos abrissem os cadernos e copiassem os exercícios do quadro.
            Fiquei a observar o comportamento de alguns colegas meus. Me sentava na terceira carteira da fila da parede. Um pouco atrás de mim se sentava o Fernando, vulgo “fefê” – apelido que lhe era atribuído pelo seu jeito afeminado –, enquanto copiava, dois alunos o ficavam insultando, dizendo que ele parecia uma moçinha – um verdadeiro bambi –, completava um deles sarcasticamente. Ele fingia indiferença enquanto copiava os exercícios, repelindo-os com trejeitos faciais.
            Na quarta fila se sentava a Florence, vulgo “rolha de poço”, alcunha lhe atribuída devido sua obesidade. Desprezada pelos garotos por não ter os dotes físicos correspondentes ao padrão de beleza feminina desejada; e pelas garotas por não ser considerada da turma das “gostosonas”; sempre estava muito triste na aula, comportamento que certamente era oriundo dos recalques e complexos que a acompanhavam desde o início de sua vida escolar.
            Mais ao fundo se sentava o Alexsander – vulgo “Robocop” – garoto que sofrera de paralisia infantil e que por isso estava numa cadeira de rodas. Quase nunca lhe via conversando com alguém – e quando o fazia – era sempre com os olhos baixos e tristes.
            Sentia que ele ficava particularmente irritado, quando algum professor por compaixão – ainda que nesta atitude não houvesse qualquer intenção de ferir – falava alguma coisa para ele para que toda a sala ouvisse; ou ainda lhe elogiassem por um ou outro motivo. Nestas ocasiões, ele parecia querer rebentar por dentro, contendo uma raiva interior que parecia querer gritar ao mundo que não precisava da pena de ninguém. Quando os professores percebiam isso, acabavam por deixá-lo no seu isolamento, atitude que ele parecia gostar.
            Me lembrei do dia anterior quando encontrei o Jorge na praia e ele havia me dito todas aquelas besteiras sobre qual música ou qual a cor certa de mulher que nós negros deveríamos escolher. Na verdade percebia que o preconceito racial era apenas uma das variáveis da intolerância humana. Tudo o que era diferente era horrorizado, discriminado, excluído.
Se tinha um horror aos diferentes – e naquele momento ria interiormente – por me lembrar de um comentário que um professor certa vez fez em sala, onde nos tinha dito que na análise das impressões digitais humanas, nunca se havia encontrado duas idênticas. Nisto tocou o sinal.

11 – A CASA CAIU
            Saindo da sala, fui imediatamente procurar Fernanda. Caminhava por entre os alunos, naquele pátio repleto de estudantes, quando a vi vindo em minha direção.
            - Oi gato! – disse com um sorriso aos lábios – vamos comer alguma coisa?
            - Ia te chamar para isso mesmo, acho que hoje tem macarronada na cantina.
            - Ah não! – exclamou com repulsa no semblante – não gosto da merenda da escola, vamos comer um salgadinho no barzinho.
            Diante daquela resposta fiquei meio sem graça, pois não tinha dinheiro para comprar lanche. Parecendo adivinhar meu constrangimento, Fernanda falou expansiva:
            - Ora, vamos lá que eu pago para a gente – disse me puxando pelo braço – e não me venha com esse machismo de que mulher não pode pagar as coisas para homem.
            Na verdade eu tinha vergonha disso sim, não sei se por machismo ou cargas d’água quaisquer, mas me sentia inibido dela ter que pagar alguma coisa para mim. Enquanto aguardávamos em uma enorme fila, ela puxou assunto:
            Marcelo – dizia beijando-me o pescoço – estava pensando em uma coisa.
            - O quê é? – perguntei enquanto acenava para um colega.
            - Ontem meus pais me perguntaram se eu estava namorando.
            - Sério – indaguei surpreso – e aí, o que você falou?
            - Que realmente estava e que me sentia muito feliz por isso – comentava com um brilho nos olhos. – Eles me disseram ainda que querem te conhecer.
            Um estremecimento tomou conta do meu corpo como um todo. Não me sentia preparado para conhecer os pais de Fernanda ainda e, na verdade, nem sei quando estaria.
            - Fernanda, acho que a gente precisa conversar um monte de coisas – disse olhando sério para ela – tem muita coisa que se passa comigo que queria compartilhar com você.
            - E você acha que não quero compartilhar das suas coisas? – interrogou por sua vez.
            - Faz o seguinte – dizia enquanto a funcionária da escola nos perguntava o que queríamos – vamos conversar hoje à tarde?
            - Só à tarde? – inquiria-me entregando o dinheiro para que eu pagasse os salgados e os dois refrigerantes que havíamos pedido – por quê não agora?
            Nisto o sinal tocou. Nos afastamos em direção à um banco e lá sentamos para comer.
            - É que agora tenho aula de física e não posso perder a explicação, pois semana que vem tem prova.
            - E depois da aula – perguntou enquanto mordia um pedaço de coxinha.
            - Depois da aula não posso me demorar em ir para casa almoçar, pois hoje à tarde tenho que continuar procurando emprego.
            - Também quero muito conversar com você Marcelo – dizia me abraçando – quero participar de tudo o que diz respeito à sua vida.
            Nisto, vimos que a Patrícia vinha em nossa direção. Assim que batia o sinal, ela andava pelo pátio passando o rodo em todo mundo que ainda não tivesse ido para as salas.
            - Faz o seguinte – disse enquanto atravessávamos o pátio – o que você acha de eu passar tipo cinco horas da tarde na sua casa, para caminharmos um pouco pela praia?
            - Perfeito – sorriu entusiasmada – mas te vejo na saída?
            - Claro amor, acha que deixaria você ir embora sem te dar um único beijo?
            Beijamo-nos rapidamente – já que a Patrícia nos gritava do meio do pátio – e cada qual foi para sua sala.
***

            Depois de ver Fernanda subir no ônibus, ainda trocamos um beijo com a mão. Fiquei a observar por alguns instantes o ônibus se distanciando na avenida, no que tratei de pegar o caminho de casa.
            Enquanto andava pensava naquela nova situação que havia surgido: ter que conhecer os pais dela. Na verdade, o que eu tinha mais medo era de ser discriminado em razão da minha cor. Já havia passado por tantas humilhações nos últimos tempos, não ser aceito pelos pais da mulher amada – e talvez a proibição do nosso namoro por eles - seria demais para mim.
            Todos estes pensamentos entretinham-me a caminhada, quando vi minha mãe num ponto de ônibus próximo.
            - Mãe, o que a senhora está fazendo aqui? – disse achegando-me junto dela.
            - Oi meu filho! – exclamou com surpresa no semblante – uma cliente me ligou para faxinar seu apartamento hoje, pois amanhã é aniversário do marido.
            - Onde é?
            - É aqui na Barra – dizia pegando na carteira o dinheiro da passagem –, foi bom ter encontrado você aqui, pois deixei seus irmãos com a Fabiane e lá em casa não tem almoço, você vai comigo.
            - Mas mãe – protestei por minha vez – hoje vou continuar procurando emprego, a senhora não lembra de eu ter lhe falado?
            - Eu sei disso meu filho – falava dando sinal para o ônibus – a cliente que me chamou é uma pessoa muito boa, gosta muito de mim, caso haja algum impedimento de você almoçar lá na casa dela, peço um adiantamento e você come lá pela Barra mesmo.
            Subimos então no ônibus, no que fomos conversando pelo caminho.
            - Mãe – disse passando o braço pelo seu ombro – estou namorando.
            - Que beleza meu filho! – exclamou com entusiasmo – onde ela mora lá na Rocinha?
            Por uns instantes fiquei mudo, pensando em qual seria a reação da minha mãe.
            - Ela não mora na Rocinha mãe – balbuciei ao responder – ela mora na Barra.
            - Na Barra? – perguntou com espanto – que menina é essa?
            - Conheci lá na escola – dizia virando meu rosto para a janela do coletivo, como se algo me chamasse à atenção no movimento do trânsito. Tem mais uma coisa mãe...
            - O quê é meu filho? – perguntava com preocupada inflexão na voz.
            - Ela é branca – respondi hesitante – e é rica.
            Minha mãe ficou em silêncio por algum tempo, como a concatenar as idéias. Nisto, após breve intervalo, falou:
            - E você acha que isso tem futuro? – questionava com gravidade na voz.
            - Mãe, até você é racista? – Contrapus com tristeza.
            - Não é isso meu filho – falava com ternura na voz – mas você é só uma criança que não sabe nada da vida. Ia continuar, quando percebeu que devíamos descer na próxima parada.
            Dei o sinal e descemos no ponto de ônibus. Enquanto a seguia, ela me disse com o semblante contrariado:
            - Depois em casa nos conversamos sobre isso. Quero chegar com a cara boa no serviço.
            Ditas estas palavras, calei-me. Mas já percebia que uma enorme barreira se interpunha entre mim e Fernanda, que além de étnico-racial, também era econômica. Chegamos a luxuoso edifício da Barra da Tijuca, onde depois de identificados através de um videofone, adentramos o interior do condomínio.
            Passamos pela portaria e pegamos o elevador rumo ao 10º andar. Quando lá chegamos, uma mulher muito bem vestida – com ares burgueses – e que aparentava por volta de uns quarenta anos, estava à porta para nos receber.
            - Olá Cláudia – disse sorridente – há quanto tempo não nos vemos. – Observava cerimoniosa.
            - Oi, Dona Ednamar! – respondeu minha mãe retribuindo efusivamente o tratamento recebido – a gente anda por aí mesmo, como Deus quer!
            - Quem é esse rapagão bonito? – perguntava como quem quer agradar seu interlocutor – não sabia que você já tinha um moço desse tamanho.
            - Pois é, Dona Ednamar – olhava com um sorriso de satisfação para mim – o tempo voa e a gente não vê!
            Todos sorrimos, no que Ednamar convidou-nos a entrar. Na sala havia um homem de meia idade, que assistia a um telejornal. Ednamar apresentou-nos ele como seu marido – embora não nos tenha convidado para sentar – onde enumerava-lhe as virtudes de minha mãe - que frisava ela -conhecer de longos anos, e que se tratava na opinião dela, de uma negra de alma branca.
            Depois desta apresentação, onde fiquei pensando qual exame já podia aferir a cor da alma das pessoas, Dona Ednamar foi nos conduzindo para a cozinha, onde ambas iam colocando os assuntos em dia.
            Apesar de indiferente em relação à ambientes, uma coisa havia me chamado à atenção na sala. Em cima de uma mesa de centro, ao lado de um vaso de plantas e uma revista, havia um boné que não me parecia estranho.
            Pensei nisto por alguns instantes, quando Dona Ednamar tolheu-me as reflexões ao me dizer que pegasse um prato e me servisse do almoço que estava pronto no fogão. Um pouco inibido, peguei um prato que ele me entregava às mãos, no que ela me disse que não ficasse acanhado e comesse à vontade.
            Enquanto comia as duas conversavam sobre as particularidades da faxina que deveria ser feita, pois Dona Ednamar queria o apartamento bem limpinho para a festa que dariam no dia seguinte em comemoração ao aniversário do marido.
            Neste ínterim, achou tempo ainda para gabar o filho que cursava Direito - e que segundo ela – tinha tantas qualidades como pessoa e estudante, que ainda veriam notícias dele quando ingressasse na carreira profissional.
            Enquanto Dona Ednamar falava ininterruptamente, parecendo achar assunto para tudo, principalmente no que se referiam as virtudes e ao futuro do filho – sem deixar de destacar as qualidades do marido - eu comia pensando em Fernanda.
            Quantos obstáculos já começavam a surgir em relação a nosso namoro. Percebia que o racismo no Brasil ainda era uma coisa bastante arraigada no comportamento das pessoas. Dava mais uma garfada no bife, quando ouvimos um estrondo bastante forte, que assustou a todos nós.
[Continua...]



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