A Terra
Nossa de Cada Dia
* Este conto participou do II Concurso de Contos "Domingos José Martins"
Era
final da tarde de um sábado na região da cidade de Porteirinha, no norte de
Minas Gerais. Sob os raios poentes do crepúsculo que se avizinhava, podia-se
observar uma reunião de pessoas no quintal de uma casa de pau-a-pique.
Deveria
haver ali umas oito ou nove famílias, que totalizava cerca de cinqüenta pessoas
reunidas com representantes de movimentos ligados à questão agrária.
Coordenando a reunião se encontram Gilberto, da Comissão Pastoral da Terra; Jorge,
do Movimento dos Sem-Terra e também Nelson, da Organização para a Libertação
dos Sem-Terra.
O
clima da reunião transcorria tenso, pois havia um mandato de reintegração de
posse expedido para ser cumprido naquele domingo, onde os agricultores
acreditavam que a polícia e os tratores já estariam ali às primeiras horas do
dia.
Um
posseiro – de nome Jacó – após ouvir a explanação dos aspectos legais do
mandato de reintegração de posse feita por Gilberto, pediu o uso da palavra, no
que foi prontamente atendido:
-
Minha gente – principiou o lavrador com voz cheia – os fazendeiros da região
querem nos tirar daqui, mas essa terra nos pertence. Eu, por exemplo, nasci
nesse chão, meu pai era um dos inúmeros descendentes de quilombolas que aqui
chegaram ainda nos tempos do Império, à época do fim da escravidão.
Fez
ligeira pausa, no que então prosseguiu:
-
Queremos terra para plantar e o fim da violência dos fazendeiros, que aqui
tantas vezes já vieram arrasar nossas roças e queimar nossas casas!
Neste
momento, brados por justiça e terra se elevaram por parte dos presentes, no que
Jorge fez uma intervenção:
-
Companheiros, todos nós sabemos que as reivindicações de vocês são justas;
porém temos que lembrar que aqui há também crianças, mulheres e idosos, por
isso mesmo – acentuou com gravidade na voz - temos que tomar algumas cautelas,
pois não sabemos o grau de violência que poderá ser utilizado amanhã na hora da
desocupação.
Nisto,
foi a vez de Nelson – representante da Organização para a Libertação dos Sem-Terra
– intervir junto aos ali presentes:
-
Gente, a fala do Jorge é correta! Já que vocês estão decididos a resistir,
vamos levar as crianças, mulheres e idosos para um acampamento no meio do mato,
assim quando amanhã eles vierem tirar vocês, pelo menos todos os pais de
família aqui presentes estarão seguros quanto à integridade física de suas
famílias!
-
Apoiado! – Gritou a maioria dos presentes – no que maridos abraçavam as
esposas; velhos e crianças trocavam sorrisos de contentamento; onde se podia
perceber que apesar de todas as dificuldades e obstáculos, a esperança era o
móvel que impulsionava aquela gente a continuar lutando e vivendo.
Após
o término daquela manifestação de contentamento pela decisão do grupo de
resistir; Gilberto, Jorge e Nelson trataram então de organizar as pessoas que
seriam levados mata adentro, enquanto Jacó e outros foram providenciar algumas lonas
que serviriam como tendas.
Pedro
– que era filho de Jacó – chamou o restante dos homens que ali se encontrava, para
que eles pudessem discutir o planejamento de algum tipo de resistência, a fim
de ser colocada em prática na hora em que a polícia chegasse.
A
noite – que trazia as trevas – também descortinava para os olhos humanos toda a
beleza do céu com seu manto salpicado de estrelas.
Logo,
aqui e ali se armavam fogueiras, onde aqueles homens - simples lavradores que
queriam um pedaço de terra para plantar, a fim de tirar o sustento de suas
famílias - discutiam suas expectativas, temores e apreensões para o dia
seguinte.
Gilberto
– que retornava do meio da mata com Jorge, Nelson e Jacó – achegou-se até Pedro
para relatar-lhe que as famílias dos posseiros já estavam acomodadas em tendas
improvisadas.
Parecendo
mais aliviado diante daquela notícia, Pedro conclamou a todos que esquentassem
alguns bules de café e assassem o restante de carne que ainda possuíam, para
que pudessem saciar a fome. Jacó foi providenciar uma fogueira maior, onde
todos pudessem ficar ao redor reunidos.
Uma
vez todos em derredor da fogueira, enquanto uns comiam; outros tomavam café ou
um trago de aguardente; ou simplesmente conversavam trivialidades; Jacó chamou
a atenção do grupo:
-
Gente – disse resoluto – já nos aproximamos das dez da noite. Dentro de algumas
horas, a polícia estará aqui para nos tirar do nosso chão. Infelizmente, a
polícia tem sido um braço armado do latifúndio, já que quando somos agredidos,
expulsos ou mortos, eles sequer comparecem aqui para fazer ocorrência; no
entanto – afirmava com inflexão na voz – basta ocuparmos alguma terra, que os
fazendeiros chamam a polícia imediatamente, onde somos expulsos e presos em
“flagrante”.
Seu
semblante de homem cansado, cujas rugas denunciavam a idade e rudezas da vida,
era alumiado pelo clarão da grande fogueira. Nisto, prosseguiu com convicção no
olhar:
-
Só nos resta resistir, pois sem essa terra, o que será de nós? – Indagava aos
companheiros que ali estavam e acompanhavam atentamente sua fala.
Nisto,
Pedro ajuntou:
-
Que resistamos então, nem que seja na bala!
Ao
final daquela frase, todos gritaram:
-
Na bala! Nem que seja na bala!
Gilberto,
Jorge e Nelson – que acompanhavam tudo atentos – se entreolharam preocupados.
Gilberto, tomando a iniciativa, interveio nos rumos que aquela confabulação
adquiria:
-
Meu povo! Resistir é uma coisa; partir para a violência, que é a arma que o
inimigo utiliza, é outra. Já diz o provérbio popular que “violência gera
violência”, diante disso, não podemos nos utilizar de um recurso que só
colocará todas as vidas aqui em risco, além de também colocar a justiça contra
vocês.
Pedro
– cujo semblante estampava um misto de raiva e revolta – atalhou:
-
Com todo o respeito “seu” Gilberto, não vejo outra alternativa. Meu pai, eu e
tantos que aqui estão, só possuímos essa terra; não sabemos fazer outra coisa a
não ser plantar e cuidar de vacas e galinhas.
Com
o olhar fixo para o chão - no que parecia concatenar as idéias - prosseguiu com
a voz firme:
-
Sem essa terra, também perdemos nossa identidade. Para onde iremos? Como
sustentaremos nossas famílias?
Ao
final da fala de Pedro, todos concordavam entre si que só restava resistir.
Gilberto, parecendo não se conformar com aquele quadro, disse a todos:
-
Minha gente, então vocês vão me prometer que antes de qualquer ato de violência
ou revide, eu terei um tempo para conversar com o Oficial de Justiça e com os
policiais responsáveis pelo cumprimento do mandato de reintegração de posse.
-
Pode ficar tranqüilo seu Gilberto – redargüiu Jacó - o senhor terá o tempo que
precisar, mesmo porque, a agressão nunca parte do nosso lado, e sim da parte
deles.
O
grupo conversou ainda durante algum tempo, onde os posseiros iam se retirando
aos poucos da roda, para se acomodar em algum canto e poder dormir um pouco.
Gilberto
instruiu Nelson que o mesmo fosse para o meio da mata, ficar junto ao
acampamento das famílias dos lavradores.
Feito
isto, Gilberto, Jorge, Jacó e Pedro também trataram de se acomodar como podiam.
Já estávamos nas primeiras horas da madrugada de domingo.
O
movimento no acampamento cessara por completo; o clarão das fogueiras se
extinguia aos poucos, e apenas o canto de algum pássaro ou o barulho de alguma
cotia que corria célere por entre os herbáceos típicos da região, quebrava o
silêncio da noite.
A
lua – com seu brilho imponente – clareava a escuridão do céu estrelado; o vento
esvoaçava folhagens de bromeliáceas e arbustos; podia-se observar um lagarto
caminhando por cima de uma pedra, no que aquele silêncio magistral, parecia
deixá-lo bastante à vontade e seguro em sua incursão noturna.
A
beleza da noite e a harmonia da natureza, contrastavam com o triste espetáculo
que seria protagonizado pelos homens naquela manhã.
As
primeiras horas da madrugada transcorreram sem fatos dignos de menção. Somente
às quatro horas da manhã, Gilberto foi desperto por um som que se assemelhava
muito a um martelo batendo numa bigorna.
Jacó
também despertou, no que se dirigiu ao líder da Comissão Pastoral da Terra
naquela região:
-
Não se assuste não seu Gilberto! – exclamou com um sorriso nos lábios – é
somente o canto de uma araponga-do-nordeste.
Gilberto
também sorriu, impressionado em seu íntimo pela similitude dos dois sons.
Após
alguns minutos, quase todo o acampamento estava desperto. Jacó então pediu a
todos que fizessem um círculo. O lavrador pediu concentração aos presentes,
pois iria fazer uma oração.
Em
voz súplice, começou a oração do Pai Nosso:
-
Pai nosso que estais no Céu, santificado seja o vosso nome, venha a nós o Vosso
reino, seja feita a Vossa vontade, assim na Terra como no Céu. A terra nossa de cada dia nos dai hoje,
perdoai as nossas ofensas, assim como nos perdoamos a quem nos tem ofendido, e
não nos deixeis cair em tentação, mas livrai-nos do mal. Amém.
Finda
a oração, só restava então esperar a chegada da polícia. Jacó conversava com os
lavradores que acreditava que já às seis horas da manhã, as autoridades estariam
ali para expulsá-los.
Neste
ínterim – sem que Gilberto e Jorge percebessem – Pedro e alguns homens se
afastaram do grupo. Caminharam em direção a uma pequena árvore ressequida, em
cujo interior do tronco retiraram dois revólveres; um calibre 32 e outro 38 e
uma espingarda calibre 12.
No
horizonte, podia-se observar o nascer do Sol, que tingia o céu de tons
avermelhados, anunciando a aurora de um novo dia.
Entre
um gole de café e um cigarro de palha, o grupo que somava - junto com Gilberto
e Jorge - umas dezoito pessoas, ficou aguardando o desenrolar dos
acontecimentos.
Já
passava das seis e meia da manhã, quando na estrada ao longe, podia-se perceber
o movimento de veículos. Os agricultores se posicionaram todos de pé
rapidamente.
Gilberto,
Jorge e Jacó, se adiantaram em relação ao grupo, caminhando em direção à
estrada, na tentativa de conversar com as autoridades.
Já mais de perto, podia-se contar no
comboio três viaturas da Polícia Militar; dois carros particulares e um trator.
A comitiva estacou cerca de cem metros de onde eles estavam.
Desceram das viaturas, doze policiais
militares e dos carros particulares, quatro Oficiais de Justiça. Os policiais
estavam armados com seis espingardas calibre 12, além de revólveres.
Um dos Oficiais de Justiça, caminhou até
os três homens. Saudando-os com apertos de mão, se apresentou e foi apresentado,
respectivamente, a cada um deles.
-
Pois bem, seu Jacó – disse pesaroso – devo informar ao senhor que estou aqui a
serviço da lei. Tenho em mãos um mandato de reintegração de posse, que poderá
ser cumprido pacificamente, onde daremos o tempo suficiente para que o senhor e
as famílias que aqui ocuparam possam sair.
-
Senhor Bruno – replicou Jacó – o que o senhor acabou de nos dizer, eu já sabia
antes mesmo do senhor abrir a boca; a justiça não nos dá opção a não ser
resistir!
Neste
momento, Gilberto interpôs:
-
Senhor Oficial de Justiça, não teria como haver uma dilação de prazo para o
cumprimento deste mandato? – inquiriu apreensivo – Afinal de contas, aqui estão
cinqüenta pessoas que não tem sequer para onde ir.
O
Oficial de Justiça parecia nervoso diante daquele impasse, no que um oficial da
Polícia Militar se aproximou. Diante da exposição de Bruno, o policial falou:
-
Não nos resta opção a não ser usar a força! Já que não querem sair por bem,
sairão por mal!
Jacó
começou a discutir com o policial, no que os outros policiais e os demais
Oficiais de Justiça se juntaram ao grupo.
Sem mais delongas, os policiais e os
Oficiais de Justiça entraram nos carros e partiram rumo ao acampamento,
seguidos pelo tratorista, deixando Gilberto, Jorge e Jacó para trás.
Pedro e os outros lavradores, haviam
percebido de longe o malogro da negociação intentada por Gilberto. Mais do que
depressa, sacaram as armas.
Pedro – armado com a espingarda – e
outros dois posseiros, armados cada qual com seu revólver, começaram a atirar
nas viaturas e nos carros.
Gilberto ainda deu um derradeiro grito,
na esperança que Pedro não fizesse nenhuma besteira, mas já era tarde.
Os policiais desceram das viaturas e
começaram a revidar os disparos. Um deles – munido de espingarda – deu um tiro
certeiro no peito de Pedro.
O corpo do lavrador prostrou-se ao chão
inerte, já sem vida. Diante daquela cena, os outros lavradores se desesperaram
e partiram para cima dos policiais. Os outros dois que estavam armados, foram
alvejados em seguida. Os
demais que tinham paus e pedras nas mãos, foram contidos com bombas de gás
lacrimogêneo e tiros de borracha.
Gilberto chegou ao local – Jorge havia
ficado cuidando de Jacó que passara mal ao ver o filho ser baleado – e tentou
acalmar a situação, porém já não havia muita coisa mais a ser feita.
O resultado daquela barbárie foi um
morto, dois feridos à bala e pelo menos dez lavradores com leves escoriações.
Um carro da imprensa acabava de chegar ao local, no que os repórteres foram
entrevistar os policiais, os Oficiais de Justiça, Gilberto, Jorge e alguns
lavradores.
Uma ambulância foi chamada, pois Jacó
parecia ter sofrido um ataque do coração. As mulheres e os demais que estavam
acampados no meio da mata também chegaram ao local, onde Nelson explicou a
Gilberto que quando lá se ouviram os disparos, as mulheres entraram em
desespero, não havendo como contê-las.
A
mulher de Pedro jogou-se sobre o corpo do marido, chorando desolada. Jorge
tentava acalmá-la, dizendo palavras de conforto, mas nada parecia amenizar a
dor que sentia naquele momento.
Afinal humilhados, restava a todos
aqueles lavradores ir embora, sabe Deus para onde. Eles e suas famílias só
queriam um pedaço de terra para plantar.
Toda
aquela batalha campal só servira para reforçar no íntimo daqueles homens e
mulheres, um sentimento que variava entre a revolta e a indignação.
Sobrava a eles rumar para a cidade mais
próxima, ou ir tentar a sorte num grande centro – como Belo Horizonte – aonde
engrossariam as filas de desempregados.
Gilberto,
Jorge e Nelson também estavam desolados. Sem dizer palavra, apenas observando a
cena, notava-se neles um sentimento de fracasso, ou na melhor das hipóteses, de
impotência.
Aqueles
homens e mulheres que apenas queriam uma vida melhor, eram obrigados a deixar o
pedaço de chão em que um dia sonharam um futuro melhor para seus filhos, em
cujo episódio se constatava com tristeza, que a reforma agrária no Brasil,
continua sendo um caso de polícia.
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